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Revolução
Como casa limpa
Como chão varrido
Como porta aberta
Como puro início
Como tempo novo
Sem mancha nem vício
Como a voz do mar
Interior de um povo
Como página em branco
Onde o poema emerge
Como arquitectura
Do homem que ergue
Sua habitação
Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004)
(do livro «O nome das coisas» - Moraes Editores, Lisboa/1977)
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Só neste ano, dezassete idosos apareceram mortos, sozinhos em casa.
Isto num país em bolandas com a «dívida», a «austeridade»,
a «competitividade», as «reformas estruturais»...
Os dados existentes revelam uma população idosa composta por «desempregados e solitários», que carece de atenção e cuidados. Portugal é o décimo país da União Europeia com maior percentagem de idosos que vivem abaixo do limiar da pobreza e sozinhos.
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(as flores são animais ferozes)
As flores são animais ferozes
feitas de restos de corações ardidos
que ao mar meteram as mãos
(Parede, 28.01.2012)
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O actual (des)governo considera que "para aumentar a produtividade" (ou seja, os lucros do capital) é preciso reduzir o período de férias e tempos de descanso. Para esta gente, os trabalhadores devem ainda trabalhar gratuitamente mais quatro dias por ano. Então, vamos lá cortar feriados! E, vai daí, quer cortar quatro desses feriados.
A coisa está decidida. Para já são quatro feriados que vão à vida: 5 de Outubro e 1 de Dezembro; a Igreja Católica eliminará outros dois, à sua escolha. O ministro da Economia diz que sim senhor, que assim é que é... Reparte-se o mal pelas aldeias; mas quem se lixa é o mexilhão...
Sui generis!...
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O PARADOXO DO VIAJANTE
Penso nos lugares aonde não mais voltarei:
não para dizer que neles se encerrou
o que deles ou através deles eu poderia ter sido.
Apenas para lembrar
que nunca lhes poderei dizer adeus.
Luís Filipe Castro Mendes (n. 1950)
(do livro «Lendas da Índia» - Publicações Dom Quixote, Junho/2011)
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O doce de marmelo que a Fátima Aguiar me ofereceu ontem? Um must!
Obrigado, cara colega e amiga!
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POEMA QUOTIDIANO
É tão depressa noite neste bairro
Nenhum outro porém senhor administrador
goza de tão eficiente serviço de sol
Ainda não há muito ele parecia
domiciliado e residente ao fim da rua
O senhor não calcula todo o dia
que festa de luz proporcionou a todos
Nunca vi e já tenho os meus anos
lavar a gente as mãos no sol como hoje
Donas de casa vieram encher de sol
cântaros alguidares e mais vasos domésticos
Nunca em tantos pés
assim humildemente brilhou
Orientou diz-se até os olhos das crianças
para a escola e pôs reflexos novos
nas míseras vidraças lá do fundo
Há quem diga que o sol foi longe demais
Algum dos pobres desta freguesia
apanhou-o na faca misturou-o no pão
Chegaram a tratá-lo por vizinho
Por este andar… Foi uma autêntica loucura
O astro-rei tornado acessível a todos
ele que ninguém habitualmente saudava
Sempre o mesmo indiferente
espectáculo de luz sobre os nossos cuidados
Íamos vínhamos entrávamos não víamos
aquela persistência rubra. Ousaria
alguém deixar um só daqueles raios
atravessar-lhe a vida iluminar-lhe as penas?
Mas hoje o sol
morreu como qualquer de nós
Ficou tão triste a gente destes sítios
Nunca foi tão depressa noite neste bairro
Ruy Belo (1933-1978)
(do livro «Aquele Grande Rio Eufrates» - 1951)