Extracto de uma crónica de João Gobern na RDP - Antena 1
(11.04.2008)
«Pela minha parte, dispenso o Acordo, a tutela, a farda cinzenta que se quer fazer vestir a um património que, até agora, não regista quaisquer prejuízos por causa do colorido. E quanto a factos, será indiscutivelmente triste o dia em que me cortarem este “cê”: um fato consumado é apenas algo que se compra e vende nas lojas de pronto-a-vestir.»
Obviamente que cito por concordar.
Agora que passou o 10 de Junho, importa, contra toda a sorte de mistificações, dizer algumas verdades a respeito do novo Acordo Ortográfico.
Eu começaria por dizer que com a língua portuguesa não se deve brincar. Desde logo por ser perigoso brincar com a cultura de um povo que tem dado ao mundo provas maiores de criatividade na mesma. Pode-se “brincar” com a mesma para a elevar, mas nunca para colocar em causa a sua forma culta - a qual levou séculos a constituir-se, a cimentar-se e a impor-se. Acresce (por isto mesmo) ser perigoso mexer-se em coisas muito fixas; por norma, correm o risco de se desmoronarem...
Porém, os “ilustres” produtores do novo Acordo Ortográfico não têm feito outra coisa que não seja brincar com a língua portuguesa, querendo transformar a brincadeira em norma, ou seja, o folguedo em tragédia. Actos destes sucedem com frequência a quem finge «amar a cultura»; mas também a quem tem por princípio basilar vergar sempre a cerviz a interesses vários… Eu diria mesmo que vivem disso!
Para tais “ilustrados”, os outros - os que se opõem ao Acordo -, é que são os ignorantes; ignorantes que não compreendem o alcance da coisa... E qual é ele?
Desde logo, levar a língua portuguesa a mais gente e a mais mundo, mediante a unificação da sua ortografia. Portanto, haveria mais que uma língua portuguesa escrita. Não há!
Portuguesa só há uma. Desde logo porque o Brasil, Estado soberano (e por motivos que só ele, enquanto tal, saberá de ciência certa), nunca chegou a subscrever os dois anteriores acordos ortográficos (realidade que agora sintomaticamente se omite). E, como se sabe, continuou a desenvolver-se e a criar-se muita e boa literatura portuguesa, brasileira e de outras nacionalidades que tomaram o português como língua. Sucede porém que os “ilustrados” pacóvios da nossa praça não só omitem tais verdades como vão ao ponto de salientar que o Brasil entrará em breve para o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas, pelo que... (*)
Chegados a este ponto as coisas começam a ficar claríssimas, transparentes mesmo; elas perdem o seu carácter pseudo-científico, a sua tecnicidade, a bonomia das suas «boas intenções», para assumirem claramente o seu real aspecto: o aspecto político (e, logo, também económico)!
Então, olha-se e lê-se de novo o dito Acordo e o que nos sai pela proa é uma espécie de língua escrita em versão transgénica, com paladares optativamente adaptados às diversas nacionalidades que a falam e usam. Coisa “moderna”… Tanto ou tão pouco “moderna” que até o Bloco de Esquerda a deixou passar no Parlamento!...
Tanta «unificação» para uma «mais ampla difusão», para afinal ficarmos com resmas de «variantes», mandando às ortigas - acima de tudo - a etimologia de palavras que são nossas… Isto é que é a defesa da «unidade da língua»?!
Ficaremos é a linguajar até deixarmos de saber escrever, é o que é.
Sejamos claros: por mais voltas que se dê, a verdade é que nos pretendem impor uma língua escrita à imagem da língua falada (**). Ora não há língua escrita que resista a semelhante estupidez, como é fácil de perceber. Alguém concebe o minhoto, o lisboeta, o brasileiro do Ceará, o moçambicano de Nampula, etc., escrevendo a língua portuguesa da mesma forma como a falam?!...
Ora sucede que este “progresso”, ainda por cima, é-nos atirado aos costados com a acusação de sermos nós, «os do contra», os «conservadores»… Progressistas e revolucionários são os Malacas Casteleiros, os Sócrates, os Luíses Amados, os Pintos Ribeiros, os Carlos Reis, os Cavacos Silvas…; os outros, como Vasco Graça Moura, Vitorino Magalhães Godinho, Eduardo Lourenço, Mário Cláudio, Maria Alzira Seixo, Vítor Manuel Aguiar e Silva, Gastão Cruz, Pedro Tamen, Manuela Magno, Maria do Rosário Pedreira, Carlos Bessa, Amadeu Baptista, Arnaldo Matos - entre milhares de outros, pois a petição on-line contra o dito Acordo já ultrapassou as 115 mil assinaturas -, estes, os outros, seriam um bando de retrógados de direita, nacionalistas e até mesmo de chauvinistas!...
Chantagens destas devem ser firmemente desmascaradas e combatidas. Sem cedências!
Camões, tal faria por certo.
Talvez ainda volte ao assunto, pois ele contém muitas perspectivas pelas quais pode ser abordado - e eu limitei-me a destacar as que julgo mais pertinentes.
(*) - Convirá recordar que há 10 milhões de portugueses, enquanto os brasileiros são para aí uns 190 milhões - o que, pelos vistos, justificará tudo… É a ditadura dos números (e não quero com isto afirmar que, no caso, as culpas são brasileiras)!
(**) - O Dr. Carlos Reis, reitor da Universidade Aberta e fervoroso defensor do «Acordo Ortográfico», na qualidade de «convidado especial» de uma audição parlamentar sobre o assunto, realizada no ano passado, confessou que o que estava em causa era «aproximar o modo como escrevemos do modo como falamos». Como outros, ele deve considerar que tal desiderato, a ser concretizado, irá «facilitar o ensino do Português»… Digam lá se não há burros mais inteligentes do que este?...