Sob o consulado dos governos de Mário Soares, de Cavaco Silva, de António Guterres e de Durão Barroso, os designados «grandes investimentos públicos» concentraram-se, de modo substancial, nas auto-estradas e na remodelação da via férrea entre Lisboa e Porto (para o famigerado Alfa Pendular); houve ainda o Alqueva, a Expo-98, a Ponte Vasco da Gama e os estádios para o campeonato europeu de futebol.
A par disto, destruiu-se muita coisa (directa e indirectamente produtiva): a metalo-mecânica pesada, grande parte da actividade mineira, a marinha mercante nacional, centenas e centenas de quilómetros de linha férrea (de via estreita e de via normal); a par desta destruição veio o completo definhamento da pesca e a da agricultura – enquanto se incrementavam as grandes superfícies comerciais e a banca, o imobiliário e os campos de golfe floresciam.
Pelo meio disto tudo foram dados incentivos de todo o género aos investimentos estrangeiros em Portugal – casos, por exemplo, da Autoeuropa, da Quimonda, da Tyco ou, mais recentemente, da Pescanova (em Mira). Isto significou, na prática, que o Estado português, depois de ter destruído produção e empregos existentes, comprou empregos a tais multinacionais – as quais se manterão em solo nacional enquanto entenderem, ou seja, enquanto considerarem tal permanência suficientemente lucrativa...
Qual a lógica de desenvolvimento de tudo isto? Nenhuma. As consequências? Essas sabemos hoje melhor do que nunca em que se consubstanciaram: florescimento do sector terciário da economia; compressão dos salários reais (crescentemente disfarçada com um acesso progressivamente mais barato ao crédito bancário); desemprego (aberto e encoberto) e precaridade do nível de trabalho. Tudo isto foi sendo cozinhado à sombra da chamada «integração europeia» do nosso país e de uma coisa anómala (mas “avançada”...) designada por «concertação social», instaurada no tempo do cavaquismo.
Mas - qual resultante lógica de tudo isto - registou-se outra consequência inevitável: o aumento das importações e diminuição das exportações, com o inerente ascenso galopante da dívida externa.
Ora o governo do engº. Sócrates prosseguiu esta política suicidária com uma pequena variante: alegando a urgência de combater o défice, juntou aquela linha geral as “reformas”; na administração pública, na saúde, na justiça, na educação. Resultado? Temos todos os problemas agravados - os estruturais e os outros. Os primeiros não foram atacados e os outros, os das ditas “reformas”, resultaram na mais absoluta perversidade e inoperância (a chamada «função pública» é hoje e praticamente inexistente, à custa a “modernização”, dos “objectivos” e das “avaliações de desempenho” - que resultam na completa governamentalização de tal trabalho; a saúde está infecta e a rebentar pelas costuras, a justiça está em coma e a educação entregue aos burocratas, aos tecnocratas... e ao «acordo ortográfico»...).
Alguns dizem que temos um país adiado? O mais correcto será dizer que temos um país que avança para o abismo!
Os «chifres» de Manuel Pinho em plena Assembleia da República, quando se debatia o Estado da Nação, constituem, no contexto que descrevi, uma espécie de performance de negríssimo humor. Destinada a evitar uma séria discussão do estado a que isto chegou? Sim. Objectivamente, sim!
E a celeuma em curso a respeito dos chamados «grandes investimentos públicos» corre o mesmo risco. O risco de levantar um denso nevoeiro sobre o que é essencial. Os cretinos em presença são, aliás, exactamente os mesmos.
Os que se opõem a semelhantes investimentos (novo aeroporto, TGV e terceira travessia do Tejo, por exemplo) defendem o quê? Nada. Se se apanharem no poder, tais “sábios” voltarão à política do combate ao défice, ainda que provavelmente por outras formas. E deixarão o tempo correr até a crise actual passar, implementando depois alguns dos investimentos que agora criticam.
Os que defendem os ditos investimentos, por seu turno, querem o quê? Combater o desemprego no plano imediato, pondo o Estado a substituir-se à iniciativa privada? E quando a crise actual passar? Estarão, então, os nossos problemas estruturais resolvidos? E passaremos de novo à tutela da iniciativa privada e ao primado do mercado? È o mais certo...
Estou em crer, portanto, não ser possível discutir nada disto (e discutir não é adiar ou fazer avançar os investimentos públicos) fora da definição de uma estratégia política e económica de desenvolvimento para o país que hoje temos. Trocar argumentos fora destes termos do problema é o mesmo que atirar perdigotos para o ar.
É claro que não me revejo nada no discurso miserabilista e demagógico dos senhores do não (que muito provavelmente, defendendo agora a suspensão das coisas, mais adiante quererão embolsar alguns proventos com a sua construção). Caríssimos: vós sois «velhos do Restelo»!
Mas o discurso dos senhores do sim também não me convence plenamente, pois é incompleto – pelo menos pelo que vi até agora. È que o problema é que não se pode voltar a correr o risco das políticas cavaquistas de suposta criação de infra-estruturas que não têm qualquer laivo de estrutura produtiva sólida atrás de si, a montante. Será que queremos aeroportos capazes e TGVs para, meramente, trazer e levar turistas? Expliquem-nos que não é isto que pretendem. Digam-nos que economia é urgente criar para que tais obras façam sentido!
Talvez volte ao assunto. É que o verdadeiro problema é saber que país queremos (penso eu de que...).