MELRO EM GAIOLA
I
Contrariamente aos outros pássaros,
o melro não canta: ri-se. O melro
é uma gargalhada semovente
voando entre as moitas,
deixando
farrapos de riso a esvoaçar nos ramos.
II
Pois bem. Alguém que odeia o riso
encerrou o melro na gaiola.
Alguém a quem o riso à solta
fazia espécie
quis ter aquele riso encarcerado,
só para si, à mão de semear.
Alguém capturou o melro e o meteu,
embrulhado no negrume da plumagem,
na gaiola, e pôs a gaiola na varanda.
Por maior escárnio, já se vê.
III
Nos primeiros tempos o melro não cantou
- quer dizer, o melro não se riu.
Quem quer perde o sentido de humor
cerrado numa gaiola.
Mas com o tempo, foi-lhe o silêncio pesando
à medida que ímpetos de riso borbulhavam
com crescente intensidade junto ao bico.
Até que o riso explodiu,
saltou fora como a rolha da garrafa
de champanhe - eis a gaiola cheia
de canto. Perdão, de riso.
IV
Nisto, os melros são como as outras aves,
soltam a voz para dizer: este lugar é meu,
quem quiser disputar-mo tem que se haver comigo.
Dizem-no geralmente a propósito de lugares amplos,
onde caibam voos inteiros e que valha
a pena defender de intrometidos.
Mas o melro na gaiola aprende depressa
a proporcionar o voo e a voz ao espaço que tem.
O impulso é maior do que o espaço disponível.
E canta - isto é, ri-se - como se fosse dono
duma fatia de mundo razoável.
Para o melro,
a gaiola é mesmo assim um espaço
que vale a pena defender
a gargalhadas.
V
Lição a reter: as expectativas
são um lugar
só aparentemente degradável.
Podem sempre encolher, mas nunca morrem.
A.M. Pires Cabral
*
Este poema pertence ao livro de A.M. Pires Cabral (nasceu em Chacim, Macedo de Cavaleiros, em 1941) intitulado «Arado», dado à estampa em Março deste ano pela Cotovia.
Adquiri este livro há dias e ele ainda está quente nas minhas mãos. Trata-se de um belo livro de poesia.