- prosa bárbara ou talvez terna -
O relógio marcava dez horas e cinquenta minutos quando ele despertou. Levantou-se da cama pelas onze e meia e preparou um banho. Na cozinha, cortou uma laranja ao meio e fez com ela um sumo; comeu ainda uma bolacha. Verifica que está muito frio.
Liga em seguida o telemóvel. Tem este uma mensagem, recebida quase às oito da manhã: «…o nosso almoço tem de ficar para outro dia…». Acende um cigarro.
Vai à casa de banho e olha-se ao espelho, passando as mãos pelo rosto, enquanto a banheira enche. Um ligeiro toque na barba e de novo o espelho. O que nele vislumbra agora proporciona-lhe a breve e estranha sensação de ser algo de irreconhecível (“Que rosto é este? Já vi aqui dois rostos ou foi ilusão minha?”). Medita ainda sobre quanto envelheceu nos últimos três ou quatro anos. Pensa ainda como a alegria (como se todas as estações do ano se tivessem juntado num novelo) lhe entrou uma vez e outra, há pouco tempo, de roldão pela casa dentro. E pressente que isso não voltará a ter lugar.
Toma banho, veste-se, sai à rua para tomar um café. Outro cigarro. Verifica que se esqueceu em casa do telemóvel e dos óculos, quando pretende responder à mensagem
que recebera. Mas toma o seu café. Toma-o triste, mas sereno.
Pega em si e vai até à beira-rio. Breves instantes. A maré encontra-se na vazante e está mesmo muito frio.
De volta a casa liga o computador. Não há nele mensagens novas; as novidades são… nenhumas. Aproveita para fazer um post – uma fotografia, à qual exíguas palavras servem de moldura. Um post sobre uns olhos, um olhar que dentro dele nunca morrerá.
Finalmente responde à mensagem. Faz nela menção à alegria, à sua outra face (à outra face que o espelho pode ter guardado). Acende outro cigarro, sem saber se irá ou não almoçar e onde. No computador, a página em branco fita-o insistentemente; como que o desafia; como que lhe diz, sussurrando: “vem até mim…”
E começa a escrever de novo (por entre um silêncio um tudo bárbaro, um tudo terno e que somente os pardais ao fim da tarde ousarão violar).
Interrompe a escrita por um curto instante. Está convicto de que existem muitas ocasiões na vida em que é preciso saber «baixar as expectativas», como agora se usa dizer a respeito de tanta coisa. Mas sabe também que continua a amar. Irremediavelmente.
E começa sôfrego, com as mãos impiedosamente geladas, a escrever de novo.
Foto de Isabela Lyrio (Brasil)
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