Verifico que de acordo com os últimos dados do INE, o desemprego em Portugal atingiu os 9,8 por cento no terceiro trimestre deste ano.
Ocorre-me de imediato, a este propósito, de um magnífico texto de Engels intitulado «Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico». É desse texto que aqui vos deixo um extracto.
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«…ocorre, assim, que o excesso de trabalho de uns é a condição determinante da carência de trabalho de outros, e que a grande indústria, lançando-se pelo mundo inteiro, em desabalada correria, à conquista de novos consumidores, reduz na sua própria casa o consumo das massas a um mínimo de fome e mina com isso o seu próprio mercado interno. "A lei que mantém constantemente o excesso relativo de população ou exército industrial de reserva em equilíbrio com o volume e a intensidade da acumulação do capital amarra o operário ao capital com laços mais fortes do que as cunhas com que Vulcano cravou Prometeu no rochedo. Isso dá origem a que à acumulação do capital corresponda uma igual acumulação de miséria. A acumulação de riqueza num dos pólos determina no pólo oposto, no pólo da classe que produz o seu próprio produto como capital, uma acumulação igual de miséria, de sofrimento, de escravidão, deignorância, embrutecimentoedegradação moral." (Marx, O Capital,t.1,cap.XXIII). E esperar do modo capitalista de produção uma distribuição diferente dos produtos seria o mesmo que esperar que os dois eléctrodos de uma bateria, quando ligados a ela, não decomponham a água nem libertem oxigénio no pólo positivo e hidrogénio no pólo negativo.
Vimos que a capacidade de aperfeiçoamento da maquinaria moderna, levada ao seu extremo, converte-se, em virtude da anarquia da produção dentro da sociedade, num preceito imperativo que obriga os capitalistas industriais, cada qual por si, a melhorarem incessantemente a sua maquinaria, a tornarem sempre mais poderosa a sua força de produção. Não menos imperativo é o preceito em que se converte para ele a mera possibilidade efectiva de dilatar a sua órbita de produção. A enorme força de expansão da grande indústria, ao lado da qual a expansão dos gases é uma brincadeira de crianças, revela-se hoje diante dos nossos olhos como uma necessidade qualitativa e quantitativa de expansão que zomba de todos os obstáculos que se lhe deparam. Esses obstáculos são os que lhe opõem o consumo, a saída, os mercados de que os produtos da grande indústria necessitam. Mas a capacidade extensiva e intensiva de expansão dos mercados obedece, por sua vez, a leis muito diferentes e que actuam de uma maneira muito menos enérgica. A expansão dos mercados não pode desenvolver-se ao mesmo ritmo que a da produção. A colisão torna-se inevitável, e como é impossível outra solução que não seja destruir o próprio modo capitalista de produção, essa colisão torna-se periódica. A produção capitalista engendra um “novo círculo vicioso".
Com efeito, desde 1825, ano em que estalou a primeira crise geral, não se passam dez anos seguidos sem em que todo o mundo industrial e comercial, a produção e a troca de todos os povos civilizados e dos de países mais ou menos bárbaros ligados a eles, saia dos eixos. O comércio é paralisado, os mercados são saturados de mercadorias, os produtos apodrecem nos armazéns abarrotados, sem encontrar saída; o dinheiro torna-se invisível; o crédito desaparece; as fábricas param; as massas operárias carecem de meios de subsistência, precisamente porque os produziram em excesso, as bancarrotas e falências sucedem-se. Esta obstrução dura anos e anos; as forças produtivas e os produtos são malbaratados e destruídos em massa até que, por fim, as mercadorias acumuladas, mais ou menos depreciadas, encontram saída, e a produção e a troca se reanimam pouco a pouco. Paulatinamente, a marcha acelera-se, o andar converte-se em trote, o trote industrial em galope e, finalmente, em corrida desenfreada, num steeple-chase da indústria, do comércio, do crédito, da especulação, para terminar, por fim, depois dos saltos mais arriscados... no fosso de outra crise. E assim sucessivamente. Cinco vezes se repete a mesma história desde1825, e presentemente (1877) estamos a vivê-la pela sexta vez. O carácter dessas crises é tão nítido e tão marcante que Fourier as abrangia todas ao descrever a primeira, dizendo que era uma crise pletórica, uma crise nascida da superabundância.
Nas crises estala, em explosões violentas, a contradição entre a produção social e a apropriação capitalista. A circulação de mercadorias é momentâneamente paralisada. O meio de circulação, o dinheiro, converte-se num obstáculo para a circulação; todas as leis da produção e da circulação das mercadorias são viradas do avesso. O conflito económico atinge o seu ponto culminante: o modo de produção rebela-se
contra o modo de distribuição.
O facto da organização social da produção dentro das fábricas se ter desenvolvido até chegar a um ponto em que passou a ser inconciliável com a anarquia - coexistente com ela e acima dela - da produção na sociedade é um dado que se revela palpável aos próprios capitalistas pela concentração violenta dos capitais, produzida durante as crises à custa da ruína de numerosos grandes e, sobretudo, pequenos capitalistas. Todo o mecanismo do modo de produção falha, esgotado pelas forças produtivas que ele mesmo criou. Já não consegue transformar em capital essa massa de meios de produção que permanecem inactivos, e precisamente por isso permanece também inactivo o exército industrial de reserva. Meios deprodução, meios de vida, operários em disponibilidade: todos os elementos da produção e da riqueza geral existem em excesso. Mas a "superabundância converte-se em fonte de miséria e de penúria" (Fourier), já que é exactamente ela que impede a transformação dos meios de produção e de vida em capital, pois na sociedade capitalista os meios de produção não podem pôr-se em movimento senão transformando-se previamente em capital, em meio de exploração da força de trabalho humana. Esse imprescindível carácter de capital dos meios de produção ergue-se como um espectro entre eles e a classe operária. É isso que impede que engrenem a alavanca material e a alavanca pessoal da produção; é o que não permite aos meios de produção funcionar nem aos operários trabalhar e viver. De um lado, o modo capitalista de produção revela, pois, a sua própria incapacidade para continuar a dirigir as suas forças produtivas. Por outro lado, essas forças produtivas compelem, com uma intensidade cada vez maior, no sentido de que se resolva a contradição, de que sejam redimidas da sua condição de capital, de que seja efectivamente reconhecido o seu carácter de forças produtivas sociais.
É essa rebelião das forças produtivas, cada vez mais imponentes, contra a sua condição de propriedade do capital, essa necessidade cada vez mais imperiosa de que se reconheça o seu carácter social, que obriga a própria classe capitalista a considerá-las cada vez mais abertamente como forças produtivas sociais, na medida em que isso é possível dentro das relações capitalistas. Tanto os períodos de elevada pressão industrial, com sua desmedida expansão do crédito, como o próprio crash, com o desmoronamento de grandes empresas capitalistas, estimulam essa forma de socialização de grandes massas de meios de produção que encontramos nas diferentes categorias de sociedades anónimas. Alguns desses meios de produção e de comunicação já são por si tão gigantescos que excluem, como ocorre com as ferrovias, qualquer outra forma de exploração capitalista. Ao chegar a uma determinada fase de desenvolvimento tal forma já não basta; os grandes produtores nacionais de um ramo industrial unem-se para formar um trust, um consórcio destinado a regular a produção; determinam a quantidade total que deve ser produzida, dividem-na entre eles e impõem, desse modo, um preço de venda de antemão fixado. Porém, como esses trusts se desmoronam ao sobrevirem os primeiros ventos maus nos negócios, conduzem com isso a uma socialização ainda mais concentrada; todo o ramo industrial se converte numa única grande sociedade anónima, e a concorrência interna dá lugar ao monopólio interno dessa sociedade única; assim aconteceu já em 1890 com a produção inglesa de álcalis, que na actualidade, depois da fusão de todas as quarenta e oito grandes fábricas do país, é explorada por uma só sociedade com direcção única e um capital de 120 milhões de marcos.
Nos trusts, a livre concorrência transforma-se em monopólio e a produção sem plano da sociedade capitalista capitula ante a produção planificada e organizada da nascente sociedade socialista. É claro que, no momento, em proveito e benefício dos capitalistas. Mas aqui a exploração torna-se tão patente, que tem forçosamente de ser derrubada. Nenhum povo toleraria uma produção dirigida pelos trusts, uma exploração tão descarada da colectividade por uma pequena quadrilha de cortadores de cupões.
De um modo ou de outro, com ou sem trusts, o representante oficial da sociedade capitalista, o Estado, tem que acabar por tomar a seu cargo o comando da produção. A necessidade a que corresponde essa transformação de certas empresas em propriedade do Estado começa a manifestar-se nas grandes empresas de transportes e comunicações, tais como o correio, o telégrafo e as ferrovias.
Além da incapacidade da burguesia para continuar a dirigir as forças produtivas modernas que as crises revelam, a transformação das grandes empresas de produção e transporte em sociedades anónimas, em trusts e em propriedade do Estado demonstra que a burguesia já não é indispensável para o desempenho dessas funções. Hoje, as funções sociais do capitalista estão todas a cargo de empregados assalariados, e toda a actividade social do capitalista se reduz a cobrar as suas rendas, cortar os seus cupões e jogar na bolsa, onde os capitalistas de toda a espécie arrebatam, uns aos outro, os seus capitais. E se antes o modo de produção capitalista deslocava os operários, agora desloca também os capitalistas, lançando-os, do mesmo modo que aos operários, entre a população excedente; embora, por enquanto, ainda não no exército industrial de reserva.
Porém, as forças produtivas não perdem sua a condição de capital ao converterem-se em propriedade das sociedades anónimas, dos trusts ou do Estado. No que se refere aos trusts e sociedades anónimas, isto é palpavelmente claro. Por seu turno, o Estado moderno tão-pouco é mais que uma organização criada pela sociedade burguesa para defender as condições exteriores gerais do modo de produção capitalista contra os atentados, tanto dos operários como dos capitalistas isolados. O Estado moderno, qualquer que seja a sua forma, é uma máquina essencialmente capitalista, é o Estado dos capitalistas, o capitalista colectivo ideal. E quanto mais forças produtivas ele passe à sua propriedade tanto mais se converterá em capitalista colectivo e maior quantidade de cidadãos explorará. Os operários continuam sendo assalariados, proletários. A relação capitalista, longe de ser abolida com essas medidas, aguça-se. Mas, ao chegar ao cume, esboroa-se. A propriedade do Estado sobre as forças produtivas não é a solução do conflito, mas encerra já no seu seio o meio formal, o instrumento para chegar à solução.
Essa solução só pode consistir em reconhecer de um modo efectivo a natureza social das forças produtivas modernas e, portanto, em harmonizar o modo de produção, de apropriação e de troca com o carácter social dos meios de produção. Para tal, não há senão um caminho: que a sociedade, abertamente e sem rodeios, tome posse dessas forças produtivas, que já não admitem outra direcção a não ser a sua. Assim procedendo, o carácter social dos meios de produção e dos produtos, que hoje se volta contra os próprios produtores, rompendo periodicamente as fronteiras do modo de produção e de troca, e só pode impor-se com uma força e eficácia tão destruidoras como o impulso cego das leis naturais, será posto em vigor com plena consciência pelos produtores e converter-se-á, de causa constante de perturbações e cataclismos periódicos, na alavanca mais poderosa da própria produção.
As forças activas da sociedade actuam, enquanto não as conhecemos e contamos com elas, exactamente como as forças da natureza: de modo cego, violento e destruidor. Mas, uma vez conhecidas, logo que se saiba compreender a sua acção, tendências e efeitos, está nas nossas mãos sujeitá-las cada vez mais à nossa vontade e, por meio delas, alcançar os fins propostos. Tal é o que ocorre, muito especialmente, com as gigantescas forças modernas da produção. Enquanto resistirmos obstinadamente a compreender a sua natureza e o seu carácter - e a essa compreensão se opõem o modo capitalista de produção e seus defensores -, essas forças actuarão apesar de nós, e dominar-nos-ão, como bem ressaltamos. Em troca, assim que penetramos na sua natureza, essas forças, postas nas mãos dos produtores associados, converter-se-ão de tiranos demoníacos em servas submissas. É a mesma diferença que há entre o maléfico poder da electricidade nos raios da tempestade e o benéfico poder da força eléctrica dominada no telégrafo e no arco voltaico; a diferença que há entre o fogo destruidor e o fogo posto ao serviço do homem. No dia em que as forças produtivas da sociedade moderna se submeterem a um regime congruente com a sua natureza por fim conhecida, a anarquia social da produção dará o seu lugar à regulamentação colectiva e organizada da produção, de acordo com as necessidades da sociedade e do indivíduo. E o regime capitalista de apropriação, em que o produto escraviza primeiro quem o cria e, em seguida, a quem dele se apropria, será substituído pelo regime de apropriação do produto que o carácter dos modernos meios de produção reclama: de um lado, apropriação directamente social, como meio para manter e ampliar a produção; do outro, a apropriação directamente individual, como meio de vida e de proveito.
O modo capitalista de produção, ao converter cada vez mais em proletários a imensa maioria dos indivíduos de cada país, cria a força que, se não quiser perecer, está obrigada a fazer essa revolução. E, ao forçar cada vez mais a conversão dos grandes meios socializados de produção em propriedade do Estado, ele já indica por si mesmo o caminho pelo qual deve produzir-se essa revolução. O proletariado toma em suas mãos o Poder do Estado e principia por converter os meios de produção em propriedade do Estado. Mas, nesse mesmo acto, destrói-se a si próprio como proletariado, destruindo toda diferença e todo o antagonismo de classes, e com isso o próprio Estado como tal. A sociedade, que se movera até então entre antagonismos de classe, precisou do Estado, ou seja, de uma organização da classe exploradora correspondente para manter as condições externas de produção e, portanto, particularmente, para manter pela força a classe explorada nas condições de opressão (a escravidão, a servidão ou a vassalagem e o trabalho assalariado), determinadas pelo modo de produção existente. O Estado era o representante oficial de toda a sociedade, a sua síntese num corpo social visível; mas era-o só como Estado que, na sua época, representava toda a sociedade: na antiguidade era o Estado dos cidadãos esclavagistas, na Idade Média o da nobreza feudal; no nosso tempo, o da burguesia. Quando o Estado se converter, finalmente, em representante efectivo de toda a sociedade, tornar-se-á por si mesmo supérfluo. Quando já não existir nenhuma classe social que precise ser submetida; quando desaparecerem, juntamente com a dominação de classe, juntamente com a luta pela existência individual, engendrada pela actual anarquia da produção, os choques e os excessos resultantes dessa luta, nada mais haverá para reprimir, nem haverá necessidade, portanto, dessa força especial de repressão que é o Estado.
O primeiro acto em que o Estado se manifesta efectivamente como representante de toda a sociedade - a posse dos meios de produção em nome da sociedade - é ao mesmo tempo o seu último acto independente enquanto Estado. A intervenção da autoridade do Estado nas relações sociais tornar-se-á supérflua num campo após outro da vida social e cessará por si mesma. O governo sobre as pessoas é substituído pela administração das coisas e pela direcção dos processos de produção.»
(Escrito: Entre Janeiro e Março de 1880)
Friederich Engels