26
Mar 10

(prosa - passível de dar origem a futuros versos)

 

Sol e depois chuva. Poeira que se levanta para assentar em seguida. Rostos fechados que vagueiam pela rua, de olhos mais ou menos fixos no empedrado lasso dos passeios. Carros parados, em fila, parecendo vazios - se é que não estão mesmo vazios.

 

Sinto-me farto, ligeiramente enjoado, sujo deste trajecto diário e daquilo que o preenche e circunda. Porém, esforço-me ainda por levantar o rosto e erguer o olhar em busca de um sorriso, de uma luz, de uma quebra na monotonia triste da tarde cansada de si ou por nós magoada. Ainda procuro algo que me estremeça, como a respiração (ou o vento) faz à luz de uma vela - e esta a ela, igualmente, mesmo que não pareça.

 

E lembro agora que o teu rosto, o teu andar, o teu porte podiam ser isso neste  preciso instante. Decerto, eclodiria então o mais puro silêncio neste ermo onde passa tanta gente.

 

E logo recordo que só uma vez, um dia, passámos por aqui, ainda que no sentido inverso ao que tomo agora. E o ermo não existia; e não havia sequer sinais do tempo que vincassem o tempo - como agora vincam estas palavras; nem sol, nem chuva, nem poeira, nem rostos, nem pedras, nem carros, nem vazio, nem sujidade - e que eu teria provavelmente, então, um sorriso nos lábios - ao menos, no mínimo, implacavelmente visível por dentro (e, quem sabe, talvez imperceptível para toda a gente).

 

Amanhã - que é já hoje - farei de novo este trajecto. De manhã para lá, ao fim da tarde para cá. Verei, ou não, coisas diferentes? Terá o vento feito aqui a sua residência e afastado a chuva? Terá o sol decidido permanecer aberto por mais tempo? Haverá gatos e cães vadiando? Sentir-se-á um aroma de flores, ou um breve cheiro a pão? Ouviremos os pássaros a pôr a conversa em dia? Terão os rostos outra luz? Estarão as pedras no seu sítio? Haverá ternura nas mãos?

 

Amanhã - que é já hoje - será outro dia. Outro dia que espera estremecer; que espera que estremeçamos mesmo na ausência um do outro - mas que nunca conseguirá fazê-lo em plena ausência do outro em nós.

 

Hoje, a noite prepara já o seu fim, tecendo o dia que aí vem. Assim gostaria eu de cerzir o tempo e a alma. É por isso que escavo o chão e imagino labaredas entre os dedos sujos.

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(Entre Lisboa, Parede e Cruz Quebrada) 

  

publicado por flordocardo às 01:08

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