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Musa ensina-me o canto
que corta a garganta
I
Ensina-me a revirar a língua.
Mas não tão subitamente.
Preciso destas poeiras e ventos
(e não só para que me arranhem)
Ensina-me o vagar da língua
que não estranha as estranhas ranhuras
da saliva ou o assobiar do respirar
nos contornos murmurados
do cinzento, a inclemência
dos objectos lisos nas escuras câmaras
da minha lucidez. Sôfregas,
mundanas.
O incalculável, sobretudo.
A ressaca de estar tão rente
ao presente, de ter as têmporas tão
enroscadas em mim.
Ou lá o que é isto.
Ensina-me o canto que verga
incomodamente a excitação da língua.
O que é certamente uma maneira
de apressar a reticência do futuro.
Ensina-me esse mastigar
só com a sua ondulação de músculo
e porventura a refinar
o cuspo azedo que fabrico.
São ensaios.
Para ir treinando a urgência.
Guardarei os dentes para outras tarefas,
outros verbos, sentidos menos restritos.
Ensina-me uma língua
que arranhe.
É só isso.
Como cambalhotas no asfalto:
felizes, ainda que necessárias.
Mais: que arranhe o próprio arranhar.
Uma língua
como a falam os homens
mesmo que nem sempre o saibam
(que eu o saiba e o não saiba
ao mesmo tempo)
Como a cospem
os que vezes sem conta cuspiram
o belo, porque era levemente implacável.
Como aqueles a quem foi ensinado
que as horas que assim
suaves batem as certezas
nos agarram a este solo
e que essa é a única canção.
Todos eles têm outro obscuro
canto a assobiar entredentes.
A voz em esforço
pois passa esfolada e indecisa
um pouco pelas frinchas do necessário
– a ele voltamos sempre
ao espreitar pelas nesgas da raiva.
Dizem-me que a língua
pertence ao obscuro e húmido.
Ou vice-versa.
Que os poetas portanto a têm
particularmente retorcida
e golpejada pelas sombras.
Mas não é isso:
que se foda a língua dos poetas.
As suas pregas dão-se mal com o meio-dia.
Eu dou-me mal com estes dias
mas insisto em lhes lamber o pó.
Ensina-me a lamber o pó
de outra maneira.
Quero a língua de todos
os aflitos, as espirais toscas
da lâmina desvairada que é o mundo.
Areja-a ao sol,
contorce-a sob a luz
desatina-a para que encontre
a fala desencontrada.
O torcer esforçado
que se esgueira pelos lugares
que nos deu este tempo.
Ensina-me a dobrar a dor
a estirar o corpo e o embaraço
dos gestos quase possíveis
Nesta língua, neste prenúncio
zumbido de quase futuros.
Ensina-me, musa, a música impraticável
(do livro «Que se Diga que Vi como a Faca Corta» - Mariposa Azual, 2010, ontem lançado em Lisboa)