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Agora peço a vossa atenção para as palavras que se seguem. São extractos de um discurso de Karl Marx, pronunciado em 7 de Janeiro de 1848, sobre a questão do comércio livre. Neste tempo em que tanto se fala da União Europeia, dos novos países em acelerado desenvolvimento, de comércio livre ou do regresso do proteccionismo e, é claro, da crise, considero importante reter o que Marx aqui nos revela. O texto integral (assim como outros) pode ser lido num livro a que já aqui fiz referência por duas vezes: «Karl Marx - Crítica do nacionalismo económico», editado pela Antígona em Novembro/2009. Devora-se num ápice, digo-vos eu.
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«(…) o consolo que o Senhor Bowring (1) prodigaliza aos operários que morrem e, em geral, a doutrina da compensação estabelecida pelos free-traders resume-se ao seguinte:
Vós, operários que morreis aos milhares, não vos deixeis cair na desolação. Podeis morrer com toda a tranquilidade. A vossa classe não desaparecerá. Será sempre suficientemente numerosa para que o capital a possa dizimar sem ter de temer a possibilidade de a aniquilar por completo. Aliás, como quereríeis que o capital arranjasse maneira de se aplicar com utilidade, se ele não tivesse o cuidado de tratar da matéria explorável, ou seja, dos operários, para voltar a explorá-los?
Mas há mais: por que razão continuar a colocar a questão da influência que a efectivação do comércio livre exercerá sobre a situação da classe operária, como se fosse um problema ainda por resolver? Todas as leis que os economistas expuseram, desde Quesnay até Ricardo, foram estabelecidas na suposição de que já não existem os entraves que ainda aprisionam a liberdade comercial. Tais leis confirmam-se à medida que o comércio livre se vai efectivando.
Dessas leis, a primeira diz-nos que a concorrência reduz o preço de qualquer mercadoria ao mínimo das respectivas despesas de produção. Deste modo, o mínimo de salário é o preço natural do trabalho. E o que é o mínimo do salário? É simplesmente o que é necessário para produzir os objectos indispensáveis ao sustento do operário, ou seja, o necessário para dar-lhe condições de se alimentar melhor ou pior e de propagar, ainda que pouco, a sua raça.
Não julguemos, contudo, que em virtude do que ficou dito o operário não possa ter senão esse mínimo de salário, e não acreditemos também que terá sempre esse mínimo de salário.
Não. Segundo esta lei, a classe operária será por vezes um pouco mais feliz. Por vezes terá mais do que o mínimo: mas este excedente não será outra coisa senão o suplemento daquilo que terá tido no tempo de estagnação industrial, ou seja, num período durante o qual teve menos do que o mínimo. Isto significa que, num certo lapso de tempo que é sempre periódico, i.e. no círculo que a indústria descreve ao passar pelas vicissitudes da prosperidade, da super-produção, da estagnação, da crise, se fizermos as contas a tudo o que a classe operária terá tido a mais e a menos do que o necessário, ver-se-á que tudo somado não terá tido nem mais nem menos do que o mínimo; por outras palavras, a classe operária ter-se-á conservado como classe após uma quantidade de desgraças, de misérias e de cadáveres caídos no campo de batalha industrial. Mas que importa? A classe continua a existir e, melhor ainda, terá entretanto crescido.
E não é tudo. O progresso industrial produz meios de subsistência menos caros. Deste modo, a aguardente substituiu a cerveja, o algodão substituiu a lã e o linho, e a batata substituiu o pão. Assim sendo, já que se arranja sempre maneira de alimentar o trabalho com produtos menos caros e mais miseráveis, o mínimo do salário vai sempre diminuindo. Se o dito salário começou por fazer com que o homem trabalhasse para poder viver, acaba por fazer com que o homem viva uma vida de máquina. A sua existência não tem outro valor que não seja o de uma simples força produtiva, e o capitalista trata-o em conformidade.
Esta lei do trabalho mercadoria, do mínimo do salário, verificar-se-á à medida que a suposição dos economistas, o livre comércio, se tenha tornado uma verdade, uma potência actualizada. Assim sendo, das duas uma: ou é preciso renegar toda a economia baseada na pressuposição do livre comércio, ou ter-se-á de concordar que, sob as condições do dito livre comércio, os operários serão gravemente atingidos pelo rigor das leis económicas.
Resumindo: o que é afinal o comércio livre no estado actual da sociedade? É a liberdade do capital. Quando tiverdes derrubado os poucos entraves nacionais que ainda limitam a marcha do capital, mais não tereis feito do que dar-lhe inteira liberdade de acção. Enquanto deixardes que subsista a relação entre o trabalho assalariado e o capital, por muito favoráveis que sejam as condições em que se processa a troca das mercadorias entre si, haverá sempre uma classe que explora e uma classe que é explorada. É verdadeiramente difícil compreender a pretensão dos defensores do comércio livre quando imaginam que o emprego mais vantajoso do capital fará desaparecer o antagonismo entre os capitalistas industriais e os trabalhadores assalariados. Bem pelo contrário, o resultado será apenas que a oposição entre essas duas classes se evidenciará ainda com maior nitidez.
Admiti por um instante que deixava de haver leis sobre os cereais, que deixava de haver alfândegas e impostos alfandegários, que todas as circunstâncias acidentais a que o operário ainda pode reportar-se como sendo as causas da sua miserável situação tinham completamente desaparecido, e tereis rasgado os véus que escondiam dos olhos do operário o seu verdadeiro inimigo.
O operário verá que o capital tornado livre não faz com que seja menos escravo do que o capital melindrado pelas alfândegas.
Não vos deixais, meus Senhores, enganar pela palavra liberdade em abstracto. Liberdade de quem? Não se trata da liberdade de um mero indivíduo confrontado com um outro indivíduo. Trata-se da liberdade que tem o capital de esmagar o trabalhador.
Como quereis continuar a dar a vossa aprovação à livre concorrência com base nessa ideia de liberdade quando uma tal liberdade mais não é do que o produto de um estado de coisas fundado sobre a livre concorrência?
Demonstrámos o que é a fraternidade que o livre comércio gera entre as diferentes classes de uma mesma nação. A fraternidade que o livre comércio estabeleceria entre as diferentes nações do mundo também não seria mais fraternal. Designar como fraternidade universal a exploração no seu estádio cosmopolita, é uma ideia que só podia ter tido origem no seio da burguesia. Todos os fenómenos destrutivos que a livre concorrência gera no interior de um país reproduzem-se em proporções gigantescas no mercado universal. Não há necessidade de nos determos mais sobre os sofismas que os defensores do comércio livre debitam a este propósito (…)»
«Dizem-nos, por exemplo, que o comércio livre geraria uma divisão internacional do trabalho que determinaria para cada país uma produção de harmonia com as respectivas vantagens naturais.
Porventura pensais, meus Senhores, que a produção de café e de açúcar é o destino natural das Índias Ocidentais. Dois séculos antes, a natureza, que não se intromete minimamente no comércio, não havia colocado nessas paragens nem café nem cana-de-açúcar.
E possivelmente não será preciso esperar meio século para que deixeis de encontrar aí café e açúcar, porque as Índias Orientais, por via da produção mais barata, já combateram e venceram esse pretenso destino natural das Índias Ocidentais. E entretanto essas mesmas Índias Orientais, com os seus dons da natureza, são já para os ingleses um fardo tão pesado como os tecelões de Dhaka, que, também eles, estavam desde a origem dos tempos destinados a executar tecelagem manual.
Uma coisa ainda que nunca pode perder-se de vista é que, tal como tudo se tornou monopólio, há também nos nossos dias alguns ramos da indústria que dominam todos os restantes e que asseguraram aos povos que mais os exploram o império sobre o mercado universal. É deste modo que no comércio internacional o algodão só por si tem um valor comercial maior do que o conjunto de todas as outras matérias-primas empregues na fabricação de vestuário. E é verdadeiramente risível ver os defensores do livre comércio fazerem sobressair algumas especialidades em cada ramo da indústria para as compararem com os produtos de uso corrente que são produzidos a preços mais baixos nos países em que a indústria é mais desenvolvida.
Se os defensores do livre comércio não são capazes de compreender como pode um país enriquecer à custa de outro, tal não deverá admirar-nos uma vez que esses mesmos senhores também não querem compreender como, no interior de um dado país, uma classe pode enriquecer à custa de outra classe.
Não julgueis, meus Senhores, que ao fazermos a crítica da liberdade de comércio tenhamos a intenção de defender o sistema proteccionista.
Se alguém se diz inimigo do regime constitucional, não está com isso a dizer que é simpatizante do Antigo Regime.
Aliás, o sistema proteccionista mais não é do que um meio para estabelecer a grande indústria no território de um povo, ou seja, para fazer com que esse povo dependa do comércio universal; e a partir do momento em que se depende do mercado universal já se depende, em maior ou menor grau, do comércio livre. Para além disso, o sistema proteccionista contribui para o desenvolvimento da livre concorrência no interior de um país. É por isso que nos países em que a burguesia começa a fazer-se valer como classe, por exemplo, na Alemanha, se verifica que essa mesma burguesia desenvolve grandes esforços para beneficiar de direitos proteccionistas. Para a burguesia os direitos proteccionistas são armas contra o feudalismo e contra o governo absoluto, são um meio de ela concentrar as suas forças, de realizar o livre comércio no interior do país.
Em geral, porém, nos nossos dias o sistema proteccionista é conservador, ao passo que o sistema do livre comércio é destruidor. Dissolve as antigas nacionalidades e conduz ao extremo antagonismo entre a burguesia e o proletariado. Em resumo, o sistema da liberdade comercial apressa a revolução social. É exclusivamente neste sentido revolucionário, meus Senhores, que voto a favor do comércio livre.»
* Discurso pronunciado no dia 7 de Janeiro de 1848, em sessão pública da Associação Democrática de Bruxelas. O texto foi inicialmente publicado no mesmo ano por iniciativa da Associação e mais tarde publicado por F. Engels como apêndice à edição de 1884, em língua alemã, da obra «Miséria da Filosofia».
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(1) - John Bowring (1792-1872), economista político inglês, quarto governador de Hong Kong, entre 1854 e 1859; foi um dos primeiros a defender o comércio livre, designadamente em artigos publicados na Westminster Review, nos anos 40 investiu na indústria do aço, no País de Gales, onde procurou aplicar algumas das medidas de melhoramento das condições laborais.