01
Ago 10

*   * 

 

The gift of tears

 

Por acréscimo sinto a calmaria

Virá surgir ao fundo do tumulto

Loucura alta atravessou a estria

 

Secreta e nua a graça do teu vulto.

Explosão criando uma ferida aberta;

Êxtase absurdo; prematuro luto

 

Absurdo, talvez; tudo agora alerta

No ser inteiro um puro encantamento

Embora o pranto o coração aperte

 

Contradizendo o que a visão sustenta.

O olhar vagueia no horizonte largo

Mas não te encontra, e a saudade inventa.

 

Também me inventas, num engano amargo,

Não propriamente amargo mas ainda

Não me aceitares sem qualquer embargo

 

Do que ameaçar possa a visão bendita

Me mortifica cada vez mais fundo.

Visão sem nome, fantástica dita

 

Quando o acaso, mistério profundo,

Nos uniu sem unir, ponto supremo.

Dir-se-ia - oh céus - até ao fim do mundo.

 

Amamo-nos no âmago do ermo,

Lá onde o verbo não impera mais.

Onde em pavor, de feliz, todo eu tremo.

 

Existimos, intactos nos umbrais

De cada encontro mágico, sem par.

Vivemos no presente e nunca mais,

 

Instantes após instante. Onde encontrar

O teu imo secreto em cada inverno,

Estação onde vieste acorrentar-me?

 

Fogo arredio intensamente terno,

Tantas contradições em ti se anulam.

És o equilíbrio do meu desgoverno.

 

Recordações intensas se acumulam

Desde esse olhar ardente que trocámos

Há pouco e há tanto tempo; se avolumam

 

As alegrias; nunca imaginámos

Tanto esplendor adentro desse espaço

Que embora dividido transformámos.

 

O que me assombra? Hermético laço

Que ora através de ti eu descortino:

Fogo predestinado passo a passo.

 

Loucura alta, parte do divino

Que me quebranta, mas a ti diz nada.

Cidade frágil, vento muito fino

 

Tentando ecoar a frase abandonada.

Feliz? Não sei. Não creio. Não entendo

Essa palavra há muito recordada.

 

Serei eu escravo de um sonho demente?

Em que termos existo em tua vida?

Como te chamas verdadeiramente?

 

O teu pranto, amor meu, donde é que vinha?

O dom das lágrimas, alto mistério

Apercebido em plena maravilha.

 

                                               (Londres, 27-28 de Janeiro 97)

 

                                                ALBERTO DE LACERDA (1928-2007)

 

(do livro «O pajem formidável dos indícios» - Assírio & Alvim, Junho/2010)

        PS - Um poema, este, que não tem parado de me agitar e de encantar desde há uns dias. Ainda não o digeri nem acho que o vá digerir tão depressa. Mas sei que é um grande poema.

 

publicado por flordocardo às 23:34
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