05
Fev 12

 

            *   *   *

 

«Quem cala a verdade, ouro enterra.»

 

 

publicado por flordocardo às 00:24

 

*   *

 

DIGO QUE NÃO SOU UM HOMEM PURO

 

Não vou dizer-te que sou um homem puro.

Entre outras coisas

falta saber se a pureza existe.

Ou se ela é, digamos, necessária.

Ou possível.

Ou se é agradável.

Acaso alguma
vez bebeste água quimicamente pura,

água de laboratório,

sem um grão de terra ou de esterco,

sem o pequeno excremento de um pássaro,

água não mais feita de oxigénio e hidrogénio?

Puf!, que porcaria.

 

Não te digo, pois, que sou um homem puro,

não te digo isso, mas precisamente o contrário.

Que amo (as mulheres, naturalmente,

pois o meu amor pode dizer o seu nome)

e gosto de carne de porco com batatas,

e grão-de-bico e chouriço, e

ovos, frango, carneiro, peru,

peixe e marisco,

e bebo rum e cerveja e aguardente e vinho,

e fornico (mesmo com o estômago cheio).

Sou impuro, que queres que te diga?

Totalmente impuro.

No entanto,

penso que há no mundo muitas coisas puras

que mais não são que pura merda.

Por exemplo, a pureza do nonagenário virgem.

A pureza dos noivos que se masturbam

em vez de
dormirem juntos numa pousada.

A pureza dos internatos, onde

a fauna pederasta

abre as suas flores de sémen provisório.

A pureza dos clérigos.

A pureza dos académicos.

A pureza dos gramáticos.

A pureza dos que afiançam

que é preciso ser puro, puro, puro.

A pureza dos que
nunca tiveram blenorragia.

A pureza da mulher que nunca lambeu uma glande.

A pureza que nunca sugou um clítoris.

A pureza que nunca pariu.

A pureza que nunca gerou.

A pureza do que bate no peito e

diz santo, santo, santo,

quando é um diabo, um diabo, um diabo.

A pureza, enfim,

de quem não chegou a ser suficientemente impuro

para saber o que é a pureza.

 

Ponto final, data e assinatura.

Assim fica escrito.

 

                                                                                       
                                                            Nicolás Guillén (Cuba, 1902-1989)

 

(do livro «Antologia Poética» - Campo das Letras, 1995, tradução de Albano Martins)

 

 

publicado por flordocardo às 00:23
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