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O «ESPÍRITO DO LUGAR»
(história relativamente curta)
Naquele lugar recôndito, com exclusivos caminhos de cabras e de terra batida onde um carro pequeno mal cabia, não se passava nada, absolutamente nada. Ali, «o acontecimento» era nada acontecer.
Bem, dizer isto talvez não seja algo inteiramente exacto… A verdade é que o único acontecimento digno de registo em Bergamota - e que a extravasava - era o Cortejo da Carriça, o qual se verificava todos os anos (e há muitos anos já perdidos na memória), fizesse sol ou chovessem picaretas, no dia de São Marinho. Carriça era a burra da dona Celeste; uma autêntica burra sagrada, a primeira e talvez derradeira vedeta do lugar.
Todos os anos, pelas sete da manhã do dia 11 de Novembro, invariavelmente, a Carriça saía empertigada da casa da sua proprietária, com largo chapéu de palha acachapado entre a cabeçorra e as orelhas, sacos vazios de trapo e de serapilheira sobre o lombo. Sozinha, mas segura, a burra percorria cerca de dois quilómetros desde o seu poiso habitual até à rotunda de Bergamota, em cujo centro sobressaía um escultural pinchavelho de pedra, meio abstracto, sendo aí, ao chegar, amarrada por populares ao dito cujo. Durante o cortejo, o acontecimento tornava-se singular, pois os habitantes de Bergamota, não mais de uns oitenta, iam colocando nos sacos alombados pela Carriça flores, castanhas (muitas), garrafões de vinho, garrafas de água-pé, broas de milho, queijos, ovos e outros víveres. “Estacionada” a burra na dita rotunda, logo aparecia quem se pusesse a assar ou a cozer as castanhas, logo surgiam canecas de barro para a pinga e, entre o trinar de uma gaita-de-beiços e incontáveis dedos de conversa, a comezaina tinha lugar por longas horas a fio.
Tirando isto, nada de facto sucedia naquela terra que nem nos mapas constava. Porém, isto não quer dizer que Bergamota não possuísse mistérios e singularidades verdadeiramente incomuns. Outros atractivos, portanto.
O lugar dispunha de um porco aprumadíssimo e inteiramente livre, corpulento, ao qual ninguém conhecia o dono e no qual ninguém ousava tocar. Andava por ali, corria seca e meca, pernoitava não se sabe onde. Tal porco era conhecido dos locais pelo nome de Swap. E ninguém sabia explicar a forma como tão estranho e estrangeirado nome havia surgido por ali, ainda por cima crismando um porco enorme e de indefinida idade. Quando Swap, em certa ocasião, esteve dois dias sem ser visto no povoado o alarido foi geral, chegando a correr o boato de que a Desdizência o tinha roubado, esquartejado e comido.
Pois é… Desdizência era outro dos mistérios de Bergamota. Era conhecida como a bruxa e curandeira local a quem, todavia, jamais alguém vira o rosto. A mulher, dizia-se, só trabalhava à noite, sob a luz de duas míseras velas e lá num alto eivado de pedregulhos e meio medonho. Quando um dia perguntaram à leiteira Carlota, afligida por um tremendo abcesso, se tinha ido até à Desdizência e como fora, a mesma limitou-se a dizer que sim, que tinha ido de noite, atrás do piar de um mocho durante mais de hora e meia para dar com a mulher, mas que nunca lhe vira o rosto, tão embrulhada ela estava em trapos de lã cardada e véus de tule. E que curada lá isso tinha sido, com chá de malvas bem forte e salpicos no rosto, noite fora, de chá de urtigas e pimenta preta. Mais do que isto ninguém sabia sobre Desdizência.
Quanto à leiteira Carlota… Bem, só se lhe conhecia uma vaca escanzelada, a Turina. Toda a gente se espantava, embora calada, como uma só vaca como aquela dava diariamente leite a tantas almas. Outra vaca, a Estrela, havia morrido uns dois meses anos da Turina aparecer; mas dessa, curiosamente, se dizia que só dava leite para a confecção de queijos e mais nada… Nesse tempo ido, em Bergamota só se bebia, portanto, leite de cabra, até porque ovelhas jamais tinham sido avistadas por aquelas bandas.
Outras coisas também lançavam estranheza sobre aquela terra, refinando a sua singularidade (e, de certo modo, também afastando dela outras gentes de outros lugares): para além da não existência de ovelhas, não havia criação de coelhos em Bergamota; em contrapartida, abundavam por ali as cabras, as galinhas, os galos, os patos e os sardões (que ali ninguém temia, aliás). Para além de tudo isto, qualquer viajante que passava em Bergamota logo se fascinava com o facto de, maioritariamente, as casas de habitação, onde o xisto dominava, não terem portas. Ainda por cima, os raros locais que tinham portas em suas casas deixavam-nas quase sempre abertas de par em par.
Capela e missa? Sim senhora, também havia disso lá na terra. Mas a coisa, igualmente, não era assim muito comum. A capela era uma edificação simples, construída em madeira e telha, não tendo mais de uns treze metros quadrados, dispondo de um Cristo na cruz e nada mais, e só abrindo portas ao domingo. Domingo era o dia da missa, ao meio-dia em ponto. Mas os habitantes de Bergamota referiam-se à sua missa dominical por intermédio de expressões verdadeiramente invulgares.
Felotes, alcunha pela qual era o senhor José conhecido por toda a gente - ele, o mais velho ancião de Bergamota -, dizia quando ia à missa: vou à tasca. A dita Carlota, por seu turno, ao dirigir-se à missa dizia pausadamente e de forma compassada à sua vaca leiteira e aos vizinhos que estivessem por perto: agora, largo tudo e vou até à queijaria (comentava-se que a expressão tinha tudo a ver com as saudades que ela tinha da vaca Estrela). Por sua vez a Padeira, personagem de quem não se conhecia outro nome na terra e que efectivamente era padeira sem dia de folga, ao deslocar- se para a missa dizia para com os seus botões: chega, agora vou dar fermento à virtude.
Havia ainda o senhor Carreiras, dono de um estabelecimento do tipo vende tudo (desde molas para a roupa até estoupa e pevides), denominado «Tasca Briefing» (outra denominação de nebulosa origem), o qual ao encerrar o seu estabelecimento aos domingos, pelas onze horas e trinta minutos da manhã, dizia aos presentes com ar fleumático: meus amigos, está na hora de desfilar; façam o favor de sair que é tempo de eu ir ao baile.
Todavia, uma boa porção dos locais, sem explicação aparentemente plausível, ao deslocar-se para a missa dominical exclamava: vou à Padeira (coisa que, claro está, nunca ninguém inflamava de segundas e ínvias intenções)! E outros ainda, embora minoritários na terra, diziam: vou ao Paulo, vou ao João, vou ao Bento ou vou ao Francisco. Isto ocorria, referia-se por ali, de acordo e consoante o nome do Papa que em cada momento ocupava o Vaticano.
O padre, esse variava todos os meses, o que também não era muito normal, convenhamos. O dito proferia uma missa breve de não mais do que três minutos e partia para nenhures, umas vezes montado numa mula, outras numa bicicleta, outras ainda numa mota ferrugenta, roufenha e de fabrico indistinto. Na realidade, não existia há longo tempo padre que parasse mais de um mês em Bergamota para a missa dominical.
Certo domingo a situação complicou-se, sobretudo para o padre da altura e logo na sua primeira missa. Mal o padre, de seu nome Ferra, tinha proferido três ou quatro palavras do ofício programado perante uma assistência de uma trintena de pessoas, eis que entrou de rompante pela capela dentro o sapateiro da terra, espavorido, suando em bica e gritando: acudam!, acudam que... que… E caiu redondo no soalho da capela. Vários dos presentes acorreram a auxiliar o homem, perante a estupefacção dos demais. Alguém lhe atirou com um copo de água ao rosto, enquanto de seguida outra alma bondosa lhe espetava nas faces duas chapadas bem dadas.
Passados curtos instantes o sapateiro acordou e logo proclamou, alto e bom som e ainda sentado no chão: gente, a Carriça está atada ao pinchavelho, toda tosquiadinha que até se vêem os ossos, e o Swap está morto ao lado dela!
Um expontâneo e denso bruaaaa soou na capela de Bergamota, enquanto o padre Ferra, estarrecido, branco como um lençol, se sentava lentamente numa cadeira, pedindo calma com uma voz arrastada e quase imperceptível. Entre os presentes, uns seguiram o exemplo do padre, outros permaneceram de pé, olhando silenciosos uns para os outros, enquanto o sapateiro continuava sentado no soalho, de pernas abertas e costado ligeiramente inclinado para trás, apoiado em mãos e musculados braços.
O que é isso da Carriça e do Swap? - perguntou a dada altura o padre. O silêncio tornou-se então ainda mais profundo e incomodativo, por entre diversos olhares de reprovação dirigidos ao pároco pelos missantes. Foi então que o sapateiro, de seu nome Silva, se levantou, sacudiu o pó das calças, virou costas e saiu apressadamente da capela, rumando à rotunda. A pouco e pouco, em silêncio, os restantes locais começaram a segui-lo, virando costas ao padre e olhando o mesmo de soslaio, uns rosnando, outros nem por isso. A missa acabara sem praticamente ter começado e o padre foi o último a sair da capela, fechando-a nervosamente à chave e seguindo os demais em marcha forçada. Uma espécie de procissão silenciosa marchava em direcção à rotunda do pinchavelho, junto à qual se vislumbravam já outras gentes da terra.
E era verdade o que o sapateiro aflito anunciara. Na terra onde nada acontecia, eis que, fora de tempo (corria já para o fim o mês de Agosto), lá estava a burra toda pele e osso amarrada ao pinchavelho da rotunda e o corpulento Swap, junto às patas daquela, todo esparramado por terra, absolutamente imóvel. A dona da Carriça, a quem toda a gente chamava Carraça embora ela fosse Celeste, fazia festas na jumenta e sussurrava-lhe qualquer coisa às orelhas, enquanto o barbeiro da terra, o senhor Manso, passava a mão direita pelo enorme costado do porco sagrado, como se quisesse certificar-se da sua morte. Tirando os parcos sussurros da dona Celeste, o silêncio continuava a prevalecer.
Nisto, o padre Ferra resolveu intervir de novo, disparando ainda ofegante: mas afinal o que se passa, alguém me explica? Acto contínuo, a padeira puxou-lhe com violência por uma manga do hábito, dizendo ao ouvido do padre, mas de forma bem perceptível: cale-se um bocadinho que agora não há tempo para explicações, ouviu bem? O padre calou-se, disse que sim com a cabeça e baixou o olhar até ao chão. Logo a Padeira tomou a palavra: isto é uma brincadeira de mau gosto e não acredito que seja obra de alguém cá da terra, a não ser, talvez, dessa cabra da Desdizência…
Instantes volvidos ouviu-se a voz do senhor Carreiras: e então ninguém viu nada?... Depois a da Carraça, aliás, dona Celeste, que abraçada à sua burra disse: eu não vi nem ouvi nada, e não acredito que a bruxa viesse por aí abaixo à toa; e isto foi coisa feita de madrugada, pela calada, pois a minha Carriça à meia-noite inda estava bem compostinha lá na choça, que eu bem a vi antes da deita. Seguiu-se a vez do senhor Silva botar faladura: e agora o São Martinho?, faz-se o cortejo com a burra neste estado? Logo acrescentando: quanto ao porco, devemos comê-lo ao jantar, pois se não é de ninguém é de todos; e como não tem ferimentos nem ar de moléstia bem vistas as coisas deve ter morrido de velho… Ao longe, uma voz logo gritou: apoiado!
O velho Felotes rematou a comoção geral proclamando: tudo pra casa; o Silva trata do sacana do porco e mais logo encontramo-nos aqui, sentença que toda a gente respeitou.
Na noite desse dia, seguindo a proposta do sapateiro, o corpulento Swap, sob várias formas e feitios, acabou mesmo por ser comido pelas gentes de Bergamota, que se juntaram em redor da rotunda de forma mais ou menos silenciosa. O padre Ferra, entretanto, levara sumiço.
Durante quatro ou cinco dias seguidos, o sucedido continuou a ser assunto do dia em Bergamota. Porém, nunca se chegou a resolver o mistério, o qual teve os seguintes resultados práticos: deixou de haver por ali porco livre e sagrado; durante mais de um mês e meio não houve missa dominical; naquele ano não houve Cortejo da Carriça, para não envergonhar as gentes de dentro e de fora da terra com o estado em que a burra se encontrava, tendo-se substituído a coisa com um desfile de cabras, patos, galinhas e leitões, sob o argumento de que a Carriça se estava a tratar de uma doença súbita, mas curável, pelo que no ano seguinte tudo voltaria ao normal.
Bergamota era uma terra bizarra, de coisas estranhas e algo imprevisíveis, bem como de gente peculiar. Mas isso proporcionava-lhe, ao mesmo tempo, um certo encanto, dava-lhe um certo poder de sedução no meio de tanta simplicidade de vida. Para além do mais, e apesar de tudo, as gentes de Bergamota acabavam por possuir, em boa verdade - e como é comum entre o povo -, um apurado espírito prático.
Como designar isto? À falta de melhor e mais imaginosa expressão, dir-se-ia que havia por aquelas bandas um indefinível e cativante «espírito do lugar». Foi talvez por isso que, a dada altura, resolvi ir passar uns tempos em Bergamota, por sinal no exacto dia em que o Cortejo da Carriça ressuscitou do bizarro mistério aqui relatado. Por coincidência também, isso ocorreu no mesmo dia em que, tendo calhado o São Martinho a um domingo, se veio a descobrir na capela de Bergamota, ao meio-dia em ponto, o corpo morto da Desdizência, já sem pele e sem carne, só ossos, aos pés do Cristo solitário. Porém, nessa ocasião só a Padeira (que lá fora como sempre dar fermento à virtude) e o novo padre deram pela coisa, tendo feito (vá se lá saber em que termos) um pacto de silêncio sobre o macabro achado, pelo que as ossadas da Desdizência acabaram por ajudar a cozer o pão da terra naquele dia de festa. Em circunstâncias que não interessam ao caso, e que seriam fastidiosas de contar, tocou-me a mim ser a única testemunha da(s) sinistra(s) ocorrência(s).
Mas acreditem: apesar da estranheza que isto vos possa provocar, está-se bem em Bergamota. Estou a gostar dos dias passados nesta terra onde as ruas cheiram profusamente a citrinos e as portas continuam abertas.
(Bergamota, 15 de Agosto de 2013)