06
Nov 13

 

 

*   *   *

 

Ronda dos traidores

 

Povos traídos já o foram muitos.

De gregos a romanos a mais de muitos centos

todos foram incorporados no grande índice

dos bichos que sentiram a lâmina na goela,

ou a entrar nos flancos para que não pudessem

ser o quanto queriam nos seus sonhos débeis.

O mal é esse mesmo, que possa a traição

grudar-se aos ossos e os mentecaptos

se sirvam dela nos banquetes férteis

em que de lampreia e faisão se embrutecem,

enquanto nos baldios a pobreza cresce.

Contudo, os brutos serão sempre os outros,

que ao longo da história se omitiram

por um gesto em falso ou um maligno passo,

ou até mesmo um decreto do senado.

Ou dormiram demais, ou no seu sono leve

trabalharam muito para que a indulgência

lhes custasse a família, os filhos, o sustento

e fossem retalhados como cordeiros mansos

que das regiões claras só podem conhecer

a escuridão infrene que os aniquila.

Traídos os traidores da ousadia

de permanecerem traídos para sempre

melhor seria que sangrassem dos ouvidos

ou que a boca de raiva lhes espumasse

pelas lídimas trafulhices de que são vítimas.

Ainda assim, não se passa nada. À vida

vão uns tantos para sofrê-la, a ranger

os poucos dentes ralos e a pôr as unhas

a salvo de qualquer lima, que está caro

o aço e nada é mais diverso

do que querer-se algo e nada se fazer

para que alguma coisa mude para que tudo

fique tal como estava antes do que se quis

mudar no âmbito das pirâmides

ou dos jardins suspensos. Traidores, portanto,

é o que mais há nas longas multidões

que os povos significam, ajoelhadas

bestas que aqui ovacionam e mais além

irão querer linchar sem que para isso

tenham paixão bastante. Dúvidas há

de que sejam homens, ou que da sua

espécie a humanidade seja em seu ardor

e escala de ansiar o pão, a paz, a liberdade,

sem que, no entanto, alastrem pelo mundo

a reclamar a luz que deveria pertencer-lhes.

E ainda falam do tempo irrepetível,

dos becos sem saída, das vozes inaudíveis,

da coroação do espanto, dos mares repletos

de fúrias e desmandos. A uns e outros todos

se vão traindo, cheios de culpa mas nunca

com remorsos de enquistarem assim os corações

nefastos, demasiado puros da pulhice alheia

que só deles mana. Não se lhes cansa o olhar

das grades  que em volta  assestam

as prisões que para si criaram,

danados de requebros não mais do que servis

à espera das migalhas que irão cair

do espavento dos bolsos que alguns benévolos

premeditadamente planeiam denegar

à fome secular e à calamidade.

Melífluo é o combate marcado por recuos,

surtos de aleivosias, suplicações, errâncias,

e a boa-fé fenece entre os traídos, prostrados

sobre a lama que os seus pés abriram

sem que de nada mais se arroguem que a traição

que lhes corre no sangue e lhes domina o espírito.

A uns e outros se abatem pelas costas.

Os de cima os de baixo e os de baixo

os de baixo, que é sempre a cair

que há-de ficar-se em coisas de ignomínia,

ou nas sujeições ignóbeis da desgraça,

ou no destemor que alguns da covardia

sacam, havendo sequazes e facas disponíveis,

usadas com perícia  a perorar

as circunstâncias graves em que se vive

num território de recursos parcos.

Traidor é sempre quem trair se deixa,

atento ou desatento à luz dos anos,

pasmado ou exaltado no seu entusiasmo

de ser sem terra, ou ter sido dela

há muito expulso, ou ser seu pasto

em vida como o será quando for morto,

a privar com os vermes que, afoitos,

em cada aresta sopesam o momento

para abocanhar a carne das ovelhas

que, cegas e ordeiras, transitam

no foco de infecção  para que alastre

a irredimível doença de que todos

sofrem. Ah, os rostos giram

nas quadraturas dos séculos, vãos uns

ceder e outros descompor-se, outros

empenham a palavra e voltarão com ela

atrás,  pelo caminho ínvio, ainda outros

murmurarão a surdina entorpecente

de um rumor, de uma conjura, de um juro

que se cobra, de uma mácula caída

sobre a melhor nódoa , de uma arma aperrada

contra o dilecto amigo, de um rei que abjurou,

de um crente que se fiou, do alento

de um homem que a si mesmo se traiu,

assim como traiu os seus mortos antecedentes

e consequentes, em velhas e novas gerações

de traidores no comum descampado

dos tempos indizíveis, coberto de fósseis e sangue

ressequido. Ah, todos traímos a infância, o menino

selvagem, o castanheiro espesso, o regaço

de quem nos olhou  pela primeira e pela última

vez como um filho querido e nos deixou partir

para a imobilização, a providência, o sossego,

a contagem incólume dos cabelos,

o beijo na face e a mão sobre o ombro,

a candura aos portões da Babilónia, os catorze

mil cegos que Samuel viu arrastar-se

nas montanhas da Macedónia a caminho de Ohrid,

vítimas estes da traição que a fereza é.

É desse lixo que os monturos se ampliam,

traição sobre traição sem mais remédio

do que ver o mundo a dissipar-se nos resquícios

da compaixão, do nojo, da bondade.

E no horizonte crespo o deserto amplia-se,

passam os comboios mas tudo está perdido,

o mar adensa-se e as traições

progridem, obsessiva e suja

a noite cobre tudo a ocultar quanto se fez

de criminoso e baixo e se sepulta nos bustos

de estuque que as galerias mostram,

um rol de heróis que a própria mãe venderam,

sem mais consolo do que viverem disso,

por um domínio, um lugar, uma quantia,

uma vara de porcos, castrados e cevados.

 

                                           Amadeu Baptista (n. 1953)

 

(extraído do blogue canal de poesia - http://canaldepoesia.blogspot.pt)

publicado por flordocardo às 03:31
tags:

03
Nov 13

 

 

*   *   *

 

 Ainda que segunda-feira tenha finalmente consulta de urologia, dou-vos a saber que arranquei de novo (e espero que decisivamente) para a reunião dos meus poemas. Espero acabar a tarefa até 10 de Dezembro.

 

 ______________________

 

  

RASTO PORTÁTIL

 

 

(POEMAS REUNIDOS - 1971/2013)

 

  

publicado por flordocardo às 04:56

 

 

*   *   *

 

As coisas que a minha irmã se lembra de colocar na sua página no facebook...

_________________________________________________________________

 

O adquirido que tanto custou a conquistar

Agora é líquido, adquirido – temos liberdade!
Mas…damos-lhe todos o mesmo valor? Não, claro que não.
Para quem tem pouca consciência política, provavelmente até o facto de termos tido uma Polícia do Regime lhes terá passado ao lado, até mesmo na própria época. Certo é que existiu e muitas foram as mossas que deixou e que com os tempos se vão esfumando.
A diferença de idades que tínhamos entre irmãos eram doze anos e se agora não faz diferença nenhuma, na altura fazia toda – andava eu na escola primária e ele iniciava-se noutras andanças. Aliás, a primeira lembrança que tenho do meu irmão não é de algum Natal, ou de brincar comigo é a de ouvir constantemente a minha mãe a dizer-lhe:
- Vê lá tem cuidado! Tu vê lá no que andas metido!
Ele nunca lhe respondia. Em vez disso atirava sempre com a mesma pergunta:
- Onde é que estão os meus ténis, mãe?
Só com o tempo percebi que o facto de querer os ténis era para poder correr melhor se a polícia aparecesse. O destino? Lisboa. O objectivo? Pintar paredes com palavras de luta contra o Regime.
Enfim, Abril chegou e a liberdade veio de peito feito mas, lá em casa , entrou de mansinho e com muitas desconfianças… 
O quarto do meu irmão estava cheio de propaganda – jornais, revistas, bandeiras, bancas, enfim, era uma dependência do meninos rabinos que pintavam paredes e, bastou um telefonema ( que nunca se percebeu de quem era ) para o meu pai queimar tudo, não fosse o Diabo tecê-las. Mas afinal a liberdade tinha vindo para ficar e com o tempo foi-se firmando e foi-se mesmo acreditando nela.
Cresci a acompanhar as conquistas da liberdade e depois de tantas lutas hoje concluo que afinal somos um Povo pobre e mal agradecido. Para mim, tudo o que temos hoje como direitos, liberdades e garantias inquestionáveis foram obra da Esquerda e nunca até hoje lhe demos o poder – e temos tido liberdade para isso !!! 

Paula Ferrão

(02.11.2013)


                                (PS - Mil beijos para a minha irmã!)

publicado por flordocardo às 04:44

02
Nov 13

 

 

*   *   *

 

o que fica da memória

 

o que fica da memória é um olho a piscar

 

o que fica da memória

gene que sobrevive ao tempo

momento único de uma década

sem testemunhas

certa frase entrecortada

perdura

gesto sobreposto em camadas de tempo

o buraco funerário do coelho

em fuga

um chapéu de bom feltro

a mão de setenta e seis anos nele pousada

alisa

a quilha hábil

moldada pelo século xix

 

o que fica da memória

sobrevive

a doenças e quedas

entrou por algum poro da mente

ali ficou reclinado

acorda sob a luz de uma palavra

ergue-se à vibração de uma árvore interior

 

estava ali desde sempre

e nós em paz porque existia

silencioso

atento

era um ramo pousado no ombro do tempo

agitou-se

estendeu um braço de dentro do braço

amiba bocejante

um pseudo-braço

para sobrevivência instantânea

 

o que resta da memória é um pseudópode

vindo da periferia obscura

brilha como a múmia no museu deserto

do bairro degradado

depois volta a sair pela esquerda baixa

deixando atrás de si a memória desta memória

a reverberar

até se diluir em pó brilhante

lento

caindo a pique

na água cada vez mais escura dos dias

 

 

                                                      Rosa Oliveira (n. 1958)

 

(do livro «Cinza» - Edições tinta-da-china, Lda., Maio/2013)

 

publicado por flordocardo às 16:32
tags:

01
Nov 13

 

 

*   *   *

 

«Quanto menos comes, bebes, compras livros, vais ao teatro e ao café, pensas, amas, teorizas, cantas, sofres, praticas desporto, etc., mais economizas e mais cresce o teu capital. «És» menos, mas «tens» mais. Assim todas as paixões e actividades são tragadas pela cobiça.»

Karl Marx

publicado por flordocardo às 05:36
tags:

Novembro 2013
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2

3
4
5
6
7
8
9

10
13
16

21
22

24
27


Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

subscrever feeds
mais sobre mim
pesquisar
 
blogs SAPO