19
Jul 10

 

*  * 

OS ESCRIBAS 

Nunca senti por eles grande entusiasmo.
Se eram excelentes eram também petulantes
e de um trato tão espinhoso como o azevinho
de que extraíam a tinta.
E se nunca fui um deles também é certo
que nunca me puderam negar o meu lugar.

Na quietude do scriptorium
crescia neles a todo o tempo uma pérola negra
como o velho coágulo seco por dentro das penas.
À margem dos textos laudatórios
arranhavam, esgadanhavam.
Rosnavam se o dia estava escuro
ou se giz a mais amolecera o vellum
ou giz a menos o deixara oleoso.

Sob os dorsos da caligrafia
arrebanhavam rancores míopes.
Sementes de ressentimento ponteavam-lhes
as espirais de fetos das maiúsculas.

De vez em quando eu tinha um sobressalto
a milhas de distância, e via na minha ausência
o cursivo inclinado de cada dorso, e sentia-os
a aperfeiçoarem-se contra mim, página a página.

Que se recordem deste contributo não desprezível
para a sua arte de invejas.

                                              Seamus Heaney (n. 1939, Irlanda)

(do livro «Da Terra à Luz – Poemas 1966-1987», com tradução, prefácio e notas de Rui Carvalho Homem - Relogio D’Água Editores, Janeiro/1997)

 

publicado por flordocardo às 00:21

"Arte de invejas"... Gosto da expressão.
TF a 19 de Julho de 2010 às 15:46

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