29
Set 10

 

*   *   *

 

MÃE

 

Mãe, eu quero ir-me embora – a vida não é nada
daquilo que disseste quando os meus seios começaram
a crescer. O amor foi tão parco, a solidão tão grande,
murcharam tão depressa as rosas que me deram –
se é que me deram flores, já não tenho a certeza, mas tu
deves lembrar-te porque disseste que isso ia acontecer.

Mãe, eu quero ir-me embora – os meus sonhos estão
cheios de pedras e de terra; e, quando fecho os olhos,
só vejo uns olhos parados no meu rosto e nada mais
que a escuridão por cima. Ainda por cima, matei todos
os sonhos que tiveste para mim – tenho a casa vazia,
deitei-me com mais homens do que aqueles que amei
e o que amei de verdade nunca acordou comigo.

Mãe, eu quero ir-me embora – nenhum sorriso abre
caminho no meu rosto e os beijos azedam na minha boca.
Tu sabes que não gosto de deixar-te sozinha, mas desta vez
não chames pelo meu nome, não me peças que fique –
as lágrimas impedem-me de caminhar e eu tenho de ir-me
embora, tu sabes, a tinta com que escrevo é o sangue
de uma ferida que se foi encostando ao meu peito como
uma cama se afeiçoa a um corpo que vai vendo crescer.

Mãe, eu vou-me embora – esperei a vida inteira por quem
nunca me amou e perdi tudo, até o medo de morrer. A esta
hora as ruas estão desertas e as janelas convidam à viagem.
Para ficar, bastava-me uma voz que me chamasse, mas
essa voz, tu sabes, não é a tua – a última canção sobre
o meu corpo já foi há muito tempo e desde então os dias

foram sempre tão compridos, e o amor tão parco, e a solidão

tão grande, e as rosas que disseste que um dia chegariam

virão já amanhã, mas desta vez, não as verei murchar.

 

                                                         Maria do Rosário Pedreira (n. 1959)

  (do livro «O Canto do Vento nos Ciprestes»)

  

Este poema (que nos põe a engolir em seco, acho eu) é dito de forma maravilhosa e enriquecedora pela própria autora (o que não é muito usual) no fecho do disco de Aldina Duarte intitulado «Mulheres ao Espelho». É uma pena não conseguir encontrar na net essa preciosidade para vos dar a conhecê-la aqui. Fica o poema escrito, belíssimo.

 

publicado por flordocardo às 12:36
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´Transmite o ke muitos de nós sente e tem medo de dizer!
Mas a solução não é ir embora, temos de gostar de nós e de nos ajudar mutuamente, tal como o António Feio disse antes de partir para outra dimesão!
Bjs
abelha-maia a 29 de Setembro de 2010 às 13:25

Obrigado pelo teu comentário e bjs!
flordocardo a 29 de Setembro de 2010 às 15:08

Extraordinário poema!
TF a 29 de Setembro de 2010 às 16:58

Este poema merece mesmo divulgação. Parabéns!
M. Silvino a 29 de Setembro de 2010 às 17:51

Comovente - sem mais palavras.
Melt a 29 de Setembro de 2010 às 19:34

Abismal.. e quem o lê não fica indiferente. Dá para ficar com uma lágrima no canto do olho e como tu bem dizes "engolimos em seco" em simultâneo. Já o li três vezes...obrigada por isto.
Bjinhos
ónix a 29 de Setembro de 2010 às 21:31

Tens razão, não nos deixa mesmo indiferentes; absolutamente nada.
Bjões! * * *
flordocardo a 29 de Setembro de 2010 às 23:37

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