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AS RAPARIGAS LÁ DE CASA

Como eu amei as raparigas lá de casa

discretas fabricantes da penumbra
guardavam o meu sono como se guardassem
o meu sonho
repetiam comigo as primeiras palavras
como se repetissem os meus versos
povoavam o silêncio da casa
anulando o chão os pés as portas por onde
saíam
deixando sempre um rastro de hortelã
traziam a manhã
cada manhã
o cheiro do pão fresco da humidade da terra
do leite acabado de ordenhar

(se voltassem a passar todas juntas agora
veríeis como ficava no ar o odor doce e materno
das manadas quando passam)

aproximavam-se as raparigas lá de casa
e eu escutava a inquieta maresia
dos seus corpos
umas vezes duros e frios como seixos
outras vezes tépidos como o interior dos frutos
no outono
penteavam-me
e as suas mãos eram leves e frescas como as folhas
na primavera

não me lembro da cor dos olhos quando olhava
os olhos das raparigas lá de casa
mas sei que era neles que se acendia
o sol
ou se agitava a superfície dos lagos
do jardim com lagos a que me levavam de mãos dadas
as raparigas lá de casa
que tinham namorados e com eles
traíam
a nossa indefinível cumplicidade

eu perdoava sempre e ainda agora perdoo
às raparigas lá de casa
porque sabia e sei que apenas o faziam
por ser esse o lado mau de sua inexplicável bondade
o vício da virtude da sua imensa ternura
da ternura inefável do meu primeiro amor
do meu amor pelas raparigas lá de casa

 

                                  Emanuel Félix (Angra do Heroísmo, 1936-2004) 

(do livro «Habitação das Chuvas»  - Angra do Heroísmo, 1997)

 

publicado por flordocardo às 16:04
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Olá!

Gostei muito deste poema. É muito lindo.

beijinhos.
gotadeorvalho a 14 de Outubro de 2010 às 16:51

Ainda bem. Bjitos! *
flordocardo a 15 de Outubro de 2010 às 11:02

Lindo!
Bjitos e bom fds! :)
Melt a 15 de Outubro de 2010 às 11:43

Ai,ai, as raparigas lá de casa... fantástico. Não sei onde é que vais buscar poetas pouco conhecidos da nossa praça e que escrevem maravilhosamente bem.
Bjokas
ónix a 16 de Outubro de 2010 às 20:38

Vou buscá-los ao meu baú (que em matéria de poesia é grande).
flordocardo a 17 de Outubro de 2010 às 19:47

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