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Julgo que há mais de um ano que não mexia no meu velho computador não portátil.
Mexi-lhe há pouco. Encontrei uns poemas de que já não me lembrava. Reli-os; alterei-lhes pequeníssimas coisas; recordei outras (como o momento especial em que os escrevi, todos no mesmo dia - 26 de Agosto de 2009 -, bem como aquele em que, julgo eu, os li pela primeira vez a alguém).
Agora deixo-os aqui. Outros, também antigos, virão aportar aqui por este mês de Dezembro, pois, em boa verdade, pouco actualmente tenho escrito (é a vida e acontece).
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UM DESTES DIAS
Um destes dias subirei ao cume
do lugar onde a árvore perdurou
como um cristal
Falarei em surdina com a forma
difusa da sua ausência perene
como quem fala com seus botões
ou nódoas negras
Falaremos de coisas incomuns e simples
do arado reformado
do pardal sem baptismo que partiu
da forma conturbada e simples da nuvem que passou
e se desfez
Falaremos do minotauro
e do filho que não teve
do sal do pão
do beijo que almejava uma boca
onde as uvas cantassem seu próprio sumo
Sendo a conversa como as cerejas
falaremos também de coisas terríveis
do sangue dos inocentes (que nunca existiram)
do volátil ouro que arrepanha as mãos
da fome e da sede
dos trémulos tentáculos com que sugamos os sonhos
da febre e dos desvãos da alma
Chegado o cansaço
adormeceremos depois serenamente
sem nunca sabermos o dia de amanhã
ou sequer se acordaremos para nova conversa
noutro cume
noutro lugar
noutra coisa sem limites nem azia
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NO LUGAR DA ÁRVORE
No lugar da árvore está agora o vento
A sua sombra desprende-se lentamente do sono
e vai com ele
em busca de outras folhas outros frutos outro timbre
No lugar da árvore abre-se agora um vinco
de semente que espera sol e água limpa
onde se aninha um silêncio sem culpa
No lugar da árvore está o sémen do vento
(que o «mercado de futuros» não viu ainda).
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TECER
Desejo tecer um dia só para ti
Um dia de algibeira
portátil
Um dia com crinas de cavalo
risos de gato
bicos de melro
caudas de cão
pedras sibilantes
estrelas morosas
Um dia sem fechaduras
nem chaves que se esquecem
Um dia condizente com a noite
onde a flor dá gritos incandescentes
Quero inventar para ti um dia com quatro estações
onde o peito me doa e a boca se cale
e o burro escouceie com o morto em cima
ao som de canções rasgadas e sem tempo
Desejo tecer um dia só teu
E no meio de tal desejo
por entre o lastro e o suor
busco a agulha capaz de tanto
o feitiço ou exorcismo das coisas inomeadas
ignoradas mas latejantes de sangue
sôfregas de ar no beijo da carne
sem código de barras
(Cruz Quebrada, 26.08.2009)