01
Dez 10

*

 

Julgo que há mais de um ano que não mexia no meu velho computador não portátil.

Mexi-lhe há pouco. Encontrei uns poemas de que já não me lembrava. Reli-os; alterei-lhes pequeníssimas coisas; recordei outras (como o momento especial em que os escrevi, todos no mesmo dia - 26 de Agosto de 2009 -, bem como aquele em que, julgo eu, os li pela primeira vez a alguém).

Agora deixo-os aqui. Outros, também antigos, virão aportar aqui por este mês de Dezembro, pois, em boa verdade, pouco actualmente tenho escrito (é a vida e acontece).

 *  *  *

  

UM DESTES DIAS

 

Um destes dias subirei ao cume

do lugar onde a árvore perdurou

como um cristal

 

Falarei em surdina com a forma

difusa da sua ausência perene

como quem fala com seus botões

ou nódoas negras

 

Falaremos de coisas incomuns e simples

do arado reformado

do pardal sem baptismo que partiu

da forma conturbada e simples da nuvem que passou

e se desfez

 

Falaremos do minotauro

e do filho que não teve

do sal do pão

do beijo que almejava uma boca

onde as uvas cantassem seu próprio sumo

 

Sendo a conversa como as cerejas

falaremos também de coisas terríveis

do sangue dos inocentes (que nunca existiram)

do volátil ouro que arrepanha as mãos

da fome e da sede

dos trémulos tentáculos com que sugamos os sonhos

da febre e dos desvãos da alma

 

Chegado o cansaço

adormeceremos depois serenamente

sem nunca sabermos o dia de amanhã

ou sequer se acordaremos para nova conversa

noutro cume

noutro lugar

noutra coisa sem limites nem azia

*

 

NO LUGAR DA ÁRVORE

 

No lugar da árvore está agora o vento

 

A sua sombra desprende-se lentamente do sono

e vai com ele

em busca de outras folhas outros frutos outro timbre

 

No lugar da árvore abre-se agora um vinco

de semente que espera sol e água limpa

onde se aninha um silêncio sem culpa

 

No lugar da árvore está o sémen do vento

(que o «mercado de futuros» não viu ainda).

 

*

 

TECER

 

Desejo tecer um dia só para ti

Um dia de algibeira

portátil

 

Um dia com crinas de cavalo

risos de gato

bicos de melro

caudas de cão

pedras sibilantes

estrelas morosas

Um dia sem fechaduras

nem chaves que se esquecem

Um dia condizente com a noite

onde a flor dá gritos incandescentes

 

Quero inventar para ti um dia com quatro estações

onde o peito me doa e a boca se cale

e o burro escouceie com o morto em cima

ao som de canções rasgadas e sem tempo

 

Desejo tecer um dia só teu

E no meio de tal desejo

por entre o lastro e o suor

busco a agulha capaz de tanto

o feitiço ou exorcismo das coisas inomeadas

ignoradas mas latejantes de sangue

sôfregas de ar no beijo da carne

sem código de barras

 

                                                      (Cruz Quebrada, 26.08.2009)

  

publicado por flordocardo às 01:28

Belos...
Porto Santo a 1 de Dezembro de 2010 às 02:32

Obrigado e abraço!
flordocardo a 1 de Dezembro de 2010 às 22:58

Podes trazer mais, please?
Melt a 1 de Dezembro de 2010 às 12:38

OK!
flordocardo a 1 de Dezembro de 2010 às 22:58

Adorei estes teus poemas. Venham mais!
TF a 1 de Dezembro de 2010 às 12:47

Hão-de vir, prometo.
flordocardo a 1 de Dezembro de 2010 às 22:57

E já pensaste em fazer um livro?
incógnito a 1 de Dezembro de 2010 às 23:01

É pá, também tu? Já pensei, já. Porém...
flordocardo a 2 de Dezembro de 2010 às 10:32

Bem, fiquei assim boquiaberta...simplesmente fantásticos. Para quando um livro? Digo-te o que disse à minha irmã antes de se resolver a publicar: acho que deves dar a conhecer ao mundo as tuas palavras. Amei.
Bjinhos
ónix a 2 de Dezembro de 2010 às 23:07

...Ao mundo... Gostei dessa. Obrigado por teres gostado e me incentivares a mais altos voos.
Bjões! * * *
flordocardo a 3 de Dezembro de 2010 às 00:10

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