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O que se segue foi publicado ontem no «Jornal de Notícias» on-line. Excelente!
Subscrevo e partilho convosco. O texto é do jornalista Óscar Mascarenhas.
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A extorsão da palavra
Aconteceu há dias entre o treinador do Benfica e um repórter de televisão: na «entrevista» ritual concedida em exclusivo ao canal que pagou a transmissão, o jornalista quis saber se Jorge Jesus se sentia contestado - ou coisa assim. O técnico retribuiu com uma pergunta, sobre se o interlocutor queria ou não que falasse sobre o jogo. Este retorquiu com um chavão em uso por alguns jornalistas que nem se dão conta da deselegância de polícia bruto: «Aqui quem faz as perguntas sou eu!» O treinador voltou costas, com um «então, tchau».
O jornalista ainda preleccionou para a câmara os seus direitos e talentos, não confundíveis com os da tropa ao serviço do canal clube (o que, na circunstância, não é proeza, convenhamos). Algo como se dissesse: «Se pensou que eu viria aqui para fazer perguntas fáceis, bem se enganou.»
A ufania do repórter não tem razão de ser. Aquelas entrevistas não pertencem a nenhum género jornalístico, são meras acções publicitárias e violam os mais elementares direitos cívicos dos protagonistas desportivos - e dos próprios jornalistas.
Há anos, outro treinador, António Oliveira, compareceu a tal «entrevista», fazendo uma declaração prévia: «Só aqui vim, porque se não viesse, seria multado.» O jornalista presente deixou essa advertência entrar-lhe pelo microfone - mas não na sua consciência ética. Aceitou continuar a extorsão da palavra.
Porque seria multado o treinador? Porque nem ele nem o jornalista são importantes para aquela liturgia: só ali estão para subliminarmente entrar nos olhos do público a quadrícula de anúncios que serve de fundo.
(Gostaria de saber o que farão os cartolas federativos, guardiães dos interesses dos pagantes da publicidade, se a uma dessas «entrevistas» comparecer um jogador com uma toalha estendida atrás, tapando o painel e assim responder ao jornalista...)
Pode obrigar-se a falar quem não quer? Isso não viola os seus direitos cívicos? Se não é tortura, o que é? E andam jornalistas metidos nisto - para mais convencidos de que estão a fazer jornalismo como deve ser? E o n.º 9 do Código Deontológico que diz que o jornalista se obriga, «antes de recolher declarações e imagens, a atender às condições de serenidade, liberdade e responsabilidade das pessoas envolvidas»?
«Quem faz as perguntas sou eu?» Olha, camarada jornalista, começa por fazer estas perguntas que aqui deixo - a ti próprio. E depois diz lá ao chefe que a tua ética te impede de entrevistar pessoas forçadas e que dificilmente estão serenas.
oscarmasc@netcabo.pt
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