I. PROPOSIÇÃO (do livro «O Escriba Acocorado» - Moraes Editores, 1978)
Servidor incorruptível da verdade e da memória
escrevo sentado e obscuro palavras terríveis
de ignomínia e acusação. De pouca ternura
também. Na penumbra deste recanto anónimo,
a aranha sombria entretece na quebradiça
baba lucilante o fabrico da História.
que há-de ler-se. Animal cauteloso,
retraçando um velho ritual, seus gestos
assumem, ainda assim, a gravidade hesitante
do risco calculado. Séculos de aprendizagem
me ensinaram uma humildade serena. Escrevendo
escrevo-me, reconciliado com os agravos
suportados e as ofensas infligidas. Os olhos
que mal vêem, viram e não querem esquecer.
E o que não vêem agora, descortina-o a exercitada
sabedoria de quatro sentidos despertos.
Enganei e fui enganado à porta do templo;
No deserto aprendi com a sede a parcimónia.
A um só tempo três mulheres amei
e a nenhuma delas deveras amava. Convicto
lhes menti; foram felizes. Eu não. Por isso
sofri lendo-lhes nos rostos a exaltação
ardente de suporem-se amadas. Traindo,
sucumbi também aos ardis de Atena. Traído,
duplamente traído, a traição que me vitima
em traidor me erige. Hesitações e lapsos
da vontade, por hábito se mudaram
em outras tantas vilezas traições.
Venho de longe, no verbo latino, no axioma
Grego, fui escravo no Egipto, homens
morreram a meu lado e vendo-lhe os olhos
agónicos e súplices, voltei horrorizado o rosto.
Aprendi depois o convívio com a morte e que mortos
são apenas gente que nos espera dormindo.
Engendrei filhos, plantei a árvore, ergui pedra
a pedra uma morada. No termo devido, aqueles
dispersaram-se a um destino vário. Breve
me quedava a contemplar os calcinados
escombros da casa que os vira crescer e partir.
Imóvel, assomo agora ao limiar maldito onde,
a fugitiva luz que estremece e, roxa, coagula,
velhos que ninguém conforta, hesitam
e aguardam, repartindo em partes iguais
menos pão do que amargura resignada.
Esta é a sequência das imagens quebradas que o sol
Descarna, fragmentos de um corpo cuja
acabada totalidade se perde no torvo domínio
do indecifrável. Em cada reflexo cintila a verdade
e todos reenviam ao mais espesso negrume.
Sorriam pois, falsos deuses, ao meu penoso e árduo
linguajar; que as glórias efémeras cumpram
o seu destino meteórico e, no azul, a esfera
retenha o escorreito traçado da sua curvatura.
A História que há-de ler-se é por mim escrita.
Anonimato igual nos cobrirá. A estas palavras não.
Sempre me causou profunda impressão este poema de Knopfli. A sua beleza grave, a sua secura terna, a sua amargura dura e simultaneamente serena, a sua estrutura concisa e musical. Muitas vezes me ocorrem alguns dos seus versos.
Partilho-o hoje convosco.