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Dez 09

 

 

 

I.  PROPOSIÇÃO          (do livro «O Escriba Acocorado» - Moraes Editores, 1978)

 

Servidor incorruptível da verdade e da memória

escrevo sentado e obscuro palavras terríveis

de ignomínia e acusação. De pouca ternura

também. Na penumbra deste recanto anónimo,

a aranha sombria entretece na quebradiça

 

baba lucilante o fabrico da História.

que há-de ler-se. Animal cauteloso,

retraçando um velho ritual, seus gestos

assumem, ainda assim, a gravidade hesitante

do risco calculado. Séculos de aprendizagem

 

me ensinaram uma humildade serena. Escrevendo

escrevo-me, reconciliado com os agravos

suportados e as ofensas infligidas. Os olhos

que mal vêem, viram e não querem esquecer.

E o que não vêem agora, descortina-o a exercitada

 

sabedoria de quatro sentidos despertos.

Enganei e fui enganado à porta do templo;

No deserto aprendi com a sede a parcimónia.

A um só tempo três mulheres amei

e a nenhuma delas deveras amava. Convicto

 

lhes menti; foram felizes. Eu não. Por isso

sofri lendo-lhes nos rostos a exaltação

ardente de suporem-se amadas. Traindo,

sucumbi também aos ardis de Atena. Traído,

duplamente traído, a traição que me vitima

 

em traidor me erige. Hesitações e lapsos

da vontade, por hábito se mudaram

em outras tantas vilezas traições.

Venho de longe, no verbo latino, no axioma

Grego, fui escravo no Egipto, homens

 

morreram a meu lado e vendo-lhe os olhos

agónicos e súplices, voltei horrorizado o rosto.

Aprendi depois o convívio com a morte e que mortos

são apenas gente que nos espera dormindo.

Engendrei filhos, plantei a árvore, ergui pedra

 

a pedra uma morada. No termo devido, aqueles

dispersaram-se a um destino vário. Breve

me quedava a contemplar os calcinados

escombros da casa que os vira crescer e partir.

Imóvel, assomo agora ao limiar maldito onde,

 

a fugitiva luz que estremece e, roxa, coagula,

velhos que ninguém conforta, hesitam

e aguardam, repartindo em partes iguais

menos pão do que amargura resignada.

Esta é a sequência das imagens quebradas que o sol

 

Descarna, fragmentos de um corpo cuja

acabada totalidade se perde no torvo domínio

do indecifrável. Em cada reflexo cintila a verdade

e todos reenviam ao mais espesso negrume.

Sorriam pois, falsos deuses, ao meu penoso e árduo

 

linguajar; que as glórias efémeras cumpram

o seu destino meteórico e, no azul, a esfera

retenha o escorreito traçado da sua curvatura.

A História que há-de ler-se é por mim escrita.

Anonimato igual nos cobrirá. A estas palavras não.

 

                                             Rui Knopfli  (1932 – 1997)

 

                                                 

Sempre me causou profunda impressão este poema de Knopfli. A sua beleza grave, a sua secura terna, a sua amargura dura e simultaneamente serena, a sua estrutura concisa e musical. Muitas vezes me ocorrem alguns dos seus versos.

Partilho-o hoje convosco.

 

publicado por flordocardo às 17:24
tags:

Belíssimo.
Anónimo a 10 de Fevereiro de 2013 às 01:42

RUI KNOPFLI pertence a duas literaturas, valorizando, como tantos outros, dois patrimónios culturais.

http://lusofonia.com.sapo.pt/knopfli.htm
José Carreiro a 28 de Junho de 2013 às 13:15

Concordo em absoluto. Obrigado e abraço!
flordocardo a 29 de Junho de 2013 às 13:02

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