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Dez 12

 

 

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COM OS DEUSES (e ao contrário de Sísifo)     

 

            Apetecia-me por vezes falar com os deuses

caso eles existissem. Deuses maiores

ou menores não interessaria

Se fosse dia com eles sentar-me-ia

num lugar rente ao mar fumando

a maresia e respirando o rumor das ondas

Se fosse noite, escolheria talvez um promontório

altíssimo onde fosse possível ver

as estrelas como pérolas. Falaríamos

sem tema nem compromisso de tudo

de nada de qualquer coisa nenhuma

como Sena terá feito em Creta com o Minotauro

            Falaríamos da música dos búzios

de harmonias e arrelias

de literatura e varredoures de rua

de política ajustamentos e desconchavos

de sangue luz e trevas e minerais

e da arte de sorrir tudo assim

coisas assim triviais e viscerais

Teríamos café para beber e talvez medronho

e ao menos algum papel e um simples lápis

para anotar o que cada um achasse

relevante por soar a novo

            Se a conversa eu sei lá a páginas

tantas sem encanto se estragasse

escolheríamos o silêncio por medida

apreciando o lugar dos peixes ou das aves

por atentos e minuciosos instantes do olhar

Eventualmente retomaríamos a fala

para falar da língua ou lermos as mãos

andando um pouco de pés nus 

em cima das agruras da vida de cada um

voltando depois ao lugar de origem

para uma réstia de humana e insaciável má-língua

tão própria de santos e pecadores

E é claro então que chegaríamos

à fala sobre a vida e sobre a morte divagando

ante a possível ou impossível eternidade

matéria em que por certo discordaríamos

batendo no chão com os pés ou mesmo as mãos

            Numa coisa porém sem aprofundar muito a coisa

encontraríamos um acordo célere. Seria

sobre a pedra sobre a pedra que se empurra

Haja o que houver diríamos em uníssono

é necessário continuar a empurrar a pedra

Isso mesmo deixaríamos escrito em papel

por todos selado com o suor de cada um

qual sal qual testemunho que uma brisa subtil

fosse lá onde fosse haveria de levar sorrindo

Então ao contrário do velho Sísifo

a nossa fala e esforço e o da brisa

sem crime nem castigo decididamente não

não teriam sido em vão

 

(Parede, 29-30.11.12)  

publicado por flordocardo às 00:29

Magnífico!
Melt a 1 de Dezembro de 2012 às 23:39

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