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NESTA FRIA NOITE DE CÉU LIMPO
(poema em “caixa baixa”)
gostava de ter comigo um termómetro
um relógio qualquer
uma máquina fotográfica
para medir o frio desta noite fria
e suas hastes de luz
apenas sei de um homem que vagueia pela noite
meio curvado com sapatos e sem meias
de outro que fala sozinho
e adormece agarrado a um livro velho
e de outro ainda a quem arranjaram casa
e lança garrafas vazias pela janela
que vivo e morro e vivo morrerei
e que ainda assim a erva cresce sob as estrelas
sob o manto solene da noite silenciosa
e da lua que não vejo por agora
eis o que sei também
daqui a nada virá o varredor
pelo menos à rua principal
desafiando sem alarido o termómetro e o relógio
fotografando beatas e talões com o olhar
duvidando se faz parte do estado social
e se tem pernas e braços para tanto ordenado ao fim do mês
enquanto as horas humedecem a roupa e os ossos
e os ulriches dormem ainda e sempre
com a pistola debaixo da almofada
vou deitar-me
tenho que me deitar para medir com os ossos o frio
o frio desta noite fria
ilusoriamente imóvel
Mais logo o dia estará claro
provavelmente cheio de um radiante sol de inverno
e os jornais falarão de crise
de recuperação de mercados de mourinhos
de torrenciais paixões de deslealdades
de inóspitas traições caseiras
e mais uma noite
esta noite terá passado
Sem outdoors nem máscaras
roem-se os nervos e a náusea
e afiam-se facas rombas
versos impuros
nesta fria noite de céu limpo
(Parede, 04.02.2013)