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o que fica da memória
o que fica da memória é um olho a piscar
o que fica da memória
gene que sobrevive ao tempo
momento único de uma década
sem testemunhas
certa frase entrecortada
perdura
gesto sobreposto em camadas de tempo
o buraco funerário do coelho
em fuga
um chapéu de bom feltro
a mão de setenta e seis anos nele pousada
alisa
a quilha hábil
moldada pelo século xix
o que fica da memória
sobrevive
a doenças e quedas
entrou por algum poro da mente
ali ficou reclinado
acorda sob a luz de uma palavra
ergue-se à vibração de uma árvore interior
estava ali desde sempre
e nós em paz porque existia
silencioso
atento
era um ramo pousado no ombro do tempo
agitou-se
estendeu um braço de dentro do braço
amiba bocejante
um pseudo-braço
para sobrevivência instantânea
o que resta da memória é um pseudópode
vindo da periferia obscura
brilha como a múmia no museu deserto
do bairro degradado
depois volta a sair pela esquerda baixa
deixando atrás de si a memória desta memória
a reverberar
até se diluir em pó brilhante
lento
caindo a pique
na água cada vez mais escura dos dias
Rosa Oliveira (n. 1958)
(do livro «Cinza» - Edições tinta-da-china, Lda., Maio/2013)