06
Nov 13

 

 

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Ronda dos traidores

 

Povos traídos já o foram muitos.

De gregos a romanos a mais de muitos centos

todos foram incorporados no grande índice

dos bichos que sentiram a lâmina na goela,

ou a entrar nos flancos para que não pudessem

ser o quanto queriam nos seus sonhos débeis.

O mal é esse mesmo, que possa a traição

grudar-se aos ossos e os mentecaptos

se sirvam dela nos banquetes férteis

em que de lampreia e faisão se embrutecem,

enquanto nos baldios a pobreza cresce.

Contudo, os brutos serão sempre os outros,

que ao longo da história se omitiram

por um gesto em falso ou um maligno passo,

ou até mesmo um decreto do senado.

Ou dormiram demais, ou no seu sono leve

trabalharam muito para que a indulgência

lhes custasse a família, os filhos, o sustento

e fossem retalhados como cordeiros mansos

que das regiões claras só podem conhecer

a escuridão infrene que os aniquila.

Traídos os traidores da ousadia

de permanecerem traídos para sempre

melhor seria que sangrassem dos ouvidos

ou que a boca de raiva lhes espumasse

pelas lídimas trafulhices de que são vítimas.

Ainda assim, não se passa nada. À vida

vão uns tantos para sofrê-la, a ranger

os poucos dentes ralos e a pôr as unhas

a salvo de qualquer lima, que está caro

o aço e nada é mais diverso

do que querer-se algo e nada se fazer

para que alguma coisa mude para que tudo

fique tal como estava antes do que se quis

mudar no âmbito das pirâmides

ou dos jardins suspensos. Traidores, portanto,

é o que mais há nas longas multidões

que os povos significam, ajoelhadas

bestas que aqui ovacionam e mais além

irão querer linchar sem que para isso

tenham paixão bastante. Dúvidas há

de que sejam homens, ou que da sua

espécie a humanidade seja em seu ardor

e escala de ansiar o pão, a paz, a liberdade,

sem que, no entanto, alastrem pelo mundo

a reclamar a luz que deveria pertencer-lhes.

E ainda falam do tempo irrepetível,

dos becos sem saída, das vozes inaudíveis,

da coroação do espanto, dos mares repletos

de fúrias e desmandos. A uns e outros todos

se vão traindo, cheios de culpa mas nunca

com remorsos de enquistarem assim os corações

nefastos, demasiado puros da pulhice alheia

que só deles mana. Não se lhes cansa o olhar

das grades  que em volta  assestam

as prisões que para si criaram,

danados de requebros não mais do que servis

à espera das migalhas que irão cair

do espavento dos bolsos que alguns benévolos

premeditadamente planeiam denegar

à fome secular e à calamidade.

Melífluo é o combate marcado por recuos,

surtos de aleivosias, suplicações, errâncias,

e a boa-fé fenece entre os traídos, prostrados

sobre a lama que os seus pés abriram

sem que de nada mais se arroguem que a traição

que lhes corre no sangue e lhes domina o espírito.

A uns e outros se abatem pelas costas.

Os de cima os de baixo e os de baixo

os de baixo, que é sempre a cair

que há-de ficar-se em coisas de ignomínia,

ou nas sujeições ignóbeis da desgraça,

ou no destemor que alguns da covardia

sacam, havendo sequazes e facas disponíveis,

usadas com perícia  a perorar

as circunstâncias graves em que se vive

num território de recursos parcos.

Traidor é sempre quem trair se deixa,

atento ou desatento à luz dos anos,

pasmado ou exaltado no seu entusiasmo

de ser sem terra, ou ter sido dela

há muito expulso, ou ser seu pasto

em vida como o será quando for morto,

a privar com os vermes que, afoitos,

em cada aresta sopesam o momento

para abocanhar a carne das ovelhas

que, cegas e ordeiras, transitam

no foco de infecção  para que alastre

a irredimível doença de que todos

sofrem. Ah, os rostos giram

nas quadraturas dos séculos, vãos uns

ceder e outros descompor-se, outros

empenham a palavra e voltarão com ela

atrás,  pelo caminho ínvio, ainda outros

murmurarão a surdina entorpecente

de um rumor, de uma conjura, de um juro

que se cobra, de uma mácula caída

sobre a melhor nódoa , de uma arma aperrada

contra o dilecto amigo, de um rei que abjurou,

de um crente que se fiou, do alento

de um homem que a si mesmo se traiu,

assim como traiu os seus mortos antecedentes

e consequentes, em velhas e novas gerações

de traidores no comum descampado

dos tempos indizíveis, coberto de fósseis e sangue

ressequido. Ah, todos traímos a infância, o menino

selvagem, o castanheiro espesso, o regaço

de quem nos olhou  pela primeira e pela última

vez como um filho querido e nos deixou partir

para a imobilização, a providência, o sossego,

a contagem incólume dos cabelos,

o beijo na face e a mão sobre o ombro,

a candura aos portões da Babilónia, os catorze

mil cegos que Samuel viu arrastar-se

nas montanhas da Macedónia a caminho de Ohrid,

vítimas estes da traição que a fereza é.

É desse lixo que os monturos se ampliam,

traição sobre traição sem mais remédio

do que ver o mundo a dissipar-se nos resquícios

da compaixão, do nojo, da bondade.

E no horizonte crespo o deserto amplia-se,

passam os comboios mas tudo está perdido,

o mar adensa-se e as traições

progridem, obsessiva e suja

a noite cobre tudo a ocultar quanto se fez

de criminoso e baixo e se sepulta nos bustos

de estuque que as galerias mostram,

um rol de heróis que a própria mãe venderam,

sem mais consolo do que viverem disso,

por um domínio, um lugar, uma quantia,

uma vara de porcos, castrados e cevados.

 

                                           Amadeu Baptista (n. 1953)

 

(extraído do blogue canal de poesia - http://canaldepoesia.blogspot.pt)

publicado por flordocardo às 03:31
tags:

Belo e certeiro!
Abraço e saúde!
Luísa a 6 de Novembro de 2013 às 15:12

Bom!!!
anónimo a 10 de Novembro de 2013 às 00:26

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