20
Dez 13

 

 

*  *  *

 

(Nas escadas do pátio havia lagartixas)

 

Nas escadas do pátio havia lagartixas,

verdete de musgo (granum salis

do granito de chumbo, pardacento).

Sentado ali, de joelhos à mostra

apontados ao céu de folhas esparzido,

olhava o não saber que haveria um dia

em que o vivo minuto voltaria

mas já morto em papel como fotografia

 

                                               Pedro  Tamen (n. 1934)

 

(do livro «Memória Indescritível» - Gótica, Lisboa/2000)

 

publicado por flordocardo às 02:29
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11
Dez 13

 

*   *

 

O poeta moçambicano Virgílio de Lemos morreu no passado dia 6, em Paris. Só agora, infelizmente, tomei contacto com a sua poesia.

Em 2010, a Imprensa Nacional publicou «Jogos de Prazer», volume de mais de 600 páginas que colige a sua poesia completa.

 

*

 

CANTEMOS COM OS POETAS DE HAITI

 

Cruzo os braços, Baby, e deixo-me ficar
Apreensivo e triste, meditando:
Tu, Baby, e os poetas nossos irmãos
Que escrevem cânticos no Haiti,
Sabem da vida incerta e vazia
Dos negros das ilhas e Américas
Dos que sofrem em África e Oceânia.

Lembras-te daquele poema universal
Que falava de desumanidade?
Lembras-te dos segredos nas entrelinhas
Dos poemas verticais da Noémia de Sousa
Sempre em papel amarelo?

Ah, se tudo fosse como nos sonhos belos
Cheio de romance e fantasia doce
Não haveria, Baby, o desespero
Nos cânticos dos poetas de Haiti
Nem segredos havia, fundos de angústia
Nos poemas verticais de desespero!

Ah, nem tudo, Baby, nem mesmo eu
Faríamos da poesia um cântico triste
E só falaríamos de paz, amor,
E numa sede constante do azul do céu!
Mas se é dor o mundo que nos cerca,
Cantemos com os poetas de Haiti
Uma canção amarga que se não perca,
Cantemos em uníssono, porque lá ou aqui,
Os segredos são iguais, fundos de angústia,
E os poemas verticais, também de desespero.

 

                                       Virgílio de Lemos (1929-2013)



 

publicado por flordocardo às 02:05
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08
Dez 13

 

* * *

 

A MINHA ESPERANÇA EM FORMA DE SONETO

A minha esperança vem de longe,
Dos arcanos da vida,
Das primeiras pegadas do Homem sobre a Terra,
Quando o sol era ainda uma promessa.
A minha esperança dobra o cabo 
de todas as noites e tormentas,
e navega altaneira pelos céus
donde me falam todas as estrelas.
A minha esperança é universal,
maior do que o sonho onde germina
a árvore de todas as certezas.
A minha esperança não tem idade,
É tão antiga e fecunda como o tempo
E chega aonde chega a Liberdade.

                                     António Arnaut (n. 1936)

(do livro «Alfabeto Íntimo e outros poemas» - Coimbra Editora, 2013)


publicado por flordocardo às 21:09
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05
Dez 13

 

 

*   *   *

 

A PÁGINA BRANCA

 

Havia uma vez, naquela cidade de província

onde joguei bilhar no intervalo de ver chegarem

e partirem as traineiras, uma jovem mulher

que se sentava na mesa mais triste do café,

e olhava em frente, sem que os seus olhos

mudassem de expressão. Todos os dias era

assim, e dela só fiquei a saber que ninguém

a conhecia. Na mesa, o mesmo livro com o mesmo

marcador que nunca saía da mesma página,

e que ela nunca abria como se não quisesse saber

como a história acabava. Naquele café, tiraram

o bilhar; naquela cidade já não há traineiras

a chegar e a partir; mas quando olho para

a mesa do canto onde a jovem mulher se

sentava, penso sempre na história que ficou

a meio, sem que eu saiba como acabou.

 

                                               Nuno Júdice (n. 1949)

 

(do livro «Navegação de acaso» - Publicações Dom Quixote, Lisboa, Nov./2013)

 

publicado por flordocardo às 00:36
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28
Nov 13

 

 

*   *   *

 

CLICHÉ

 

 

Incluo-me entre as vontades dolorosas

aquelas que decidem sobre o lume

aquelas que deslizam hesitantes

na vaga sensação de tanto estrume.

 

Em volta do seu pulso mole e débil

por dentro do seu óleo morno e roxo

para além deste limite rombo e ferido

debaixo de um telhado falso ou frouxo.

 

Sem nada. Sem firmeza, sem sentido,

sem gravata, sem vestido,

sem um ponto qualquer de referência.

 

Incapaz de ser outro mais fremente

como um cavalo opresso ou mastro fino

passeando ao escuro a indigência.

 

 

                                               João Rui de Sousa (n. 1928)

 

(do livro «A Habitação dos Dias» - 1962)


publicado por flordocardo às 23:20
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23
Nov 13

 

*  *  *

 

Soneto


Não pode Amor por mais que as falas mude 
exprimir quanto pesa ou quanto mede. 
Se acaso a comoção falar concede 
é tão mesquinho o tom que o desilude. 

Busca no rosto a cor que mais o ajude, 
magoado parecer aos olhos pede, 
pois quando a fala a tudo o mais excede 
não pode ser Amor com tal virtude. 

Também eu das palavras me arreceio, 
também sofro do mal sem saber onde 
busque a expressão maior do meu anseio. 

E acaso perde, o Amor que a fala esconde, 
em verdade, em beleza, em doce enleio? 
Olha bem os meus olhos, e responde. 



                               António Gedeão (1906-1997)


(in «Poesias Completas»)

publicado por flordocardo às 01:04
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18
Nov 13

 

 

*   *   *

 

Coisas, Pequenas Coisas


Fazer das coisas fracas um poema. 

Uma árvore está quieta, 
murcha, desprezada. 
Mas se o poeta a levanta pelos cabelos 
e lhe sopra os dedos, 
ela volta a empertigar-se, renovada. 
E tu, que não sabias o segredo, 
perdes a vaidade. 
Fora de ti há o mundo 
e nele há tudo 
que em ti não cabe. 

Homem, até o barro tem poesia! 
Olha as coisas com humildade. 



                                      Fernando Namora (1919-1989)


(in «Mar de Sargaços»)


publicado por flordocardo às 19:05
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15
Nov 13

 

 

*   *   *

 

AS MÃOS

 

Brandamente escrevem dos espasmos do sol.
Envelhecem do pulso ao cérebro, ao calor baço
de um revérbero no eixo dos ventos, usura
das máscaras que, sucessivamente, as transformam

de consciência em cal ou metal obscuro.
E já não é por si que a presença existe ou
subsiste o que separa. Destroem as sementes,
apodrecem como um sopro e não são remanso

na areia ou domadoras de chamas. Igualam-se
à água, para serem raiz do que se cala
e insinuam-se, para sempre, no pó da noite.

Um castelo de pele tomba. Deixam de ser
nomeadas ou nome. Escrevem, brandamente,
do termo da música o luto do silêncio.


                                       Orlando Neves (1935-2005)

 

(do livro «Decomposição - o Corpo»)

 

publicado por flordocardo às 03:30
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12
Nov 13

 

 

*   *   *

 

MORTE POR ENTERRAMENTO

 

Este local não é

Próprio para plantar.

Aqui a terra é

Dura, seca, irritante -

Agulhas de folhas mortas

Arranham.

Fecho os olhos, o pó

Sufoca-me a garganta,

Nunca pensei que a terra

Pudesse ser tão pesada,

Talvez se eu

Levantar um braço

Alguém venha atravessar

Um dia a minha sepultura e,

Como nas noites dos filmes de terror,

Veja uma mão sem vida, uma palma aberta.

Dedos meio enrolados...

E grite.

 

Eu não morri nesse dia -

Outra coisa sucedeu

E ainda permanece

Na sepultura pútrida

Fermentando o conhecimento das trevas.

 

 

                                       Hanan Ashrawi (n. Nablus, Palestina - 1946)

 

(Em Fevereiro de 1988 soldados israelitas enterraram vivos quatro jovens - Isam Shafiq Ishtayyeh, Abdel-Latif Mahmud Ishtayyeh, Muhsin Hamdan e Mustafa Abdel-Majid Hamdan - da aldeia de Salim, perto de Nablus. Depois dos soldados partirem, os aldeões escavaram as sepulturas e conseguiram resgatá-los com vida.)

publicado por flordocardo às 03:45
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09
Nov 13

 

 

*   *

 

(Pois morre-se de muita coisa, de muita coisa)

 

Pois morre-se de muita coisa, de muita coisa
se morre, morre-se por tudo e por nada
morre-se sempre muito
Por exemplo, de frio e desalento
um pouco todos os dias
mas de calor também se morre
e de esperança outro tanto
e é assim: como a esperança nunca morre
morre a gente de ter que esperar
Morre-se enfim de tudo um pouco
De olhar as nuvens no céu a passar
ou os pássaros a voar, não há mais remédio
ó amigos, tem que se morrer
Até de respirar se morre e tanto
tão mais ainda que de cancro
De amar bem e amar mal
de amar e não amar, morre-se
De abrir e fechar, a janela ou os olhos
tão simples afinal, morre-se
Também de concluir o poema
este ou qualquer outro, tanto faz
ou de o deixar em meio, o resultado
é o mesmo: morre-se
Data-se e assina-se - ou nem isso
Sobrevive-se - ou nem tanto
Morre-se - sempre
Muito

 

                                            Rui Caeiro (n. 1943)


(do livro «Sobre a nossa morte bem muito obrigado, & etc»)

publicado por flordocardo às 00:14
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