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O ruído vário da rua
Depois de eu cessar, o ruído.
Eu também sou um cego
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(Por vezes chega um rumor que traz consigo o que podia ser)
Por vezes chega um rumor que traz consigo o que podia ser
um mistério. O que esperamos torna-se igual ao que se escuta.
Uma voz é sempre devagar que se aproxima para recebermos
uma maior tranquilidade. Compreendemo-la porque vinha segredar
qualquer palavra que se tinha esquecido. Sem pressa os olhos
fecham-se. Alguém há-de passar a mão sobre o nosso ombro.
Fernando Guimarães (n. 1928)
(dolivro «Os caminhos habitados» - Edições Afrontamento, Setembro/2013)
- O anterior poema deste autor aqui exposto encontra-se incorrecto, pois não está dividido em estrofes e falta-lhe um verso. As minhas desculpas, mas até agora
não consegui resolver o problema de o voltar a editar. -
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(O fogo que na branca cera ardia) |
O fogo que na branda cera ardia, Vendo o rosto gentil que eu na alma vejo, Se acendeu de outro fogo do desejo, Por alcançar a luz que vence o dia.
Como de dous ardores se incendia, Da grande impaciência fez despejo, E, remetendo com furor sobejo, Vos foi beijar na parte onde se via.
Ditosa aquela flama, que se atreve A apagar seus ardores e tormentos Na vista de que o mundo tremer deve!
Namoram-se, Senhora, os Elementos De vós, e queima o fogo aquela neve Que queima corações e pensamentos. |
Luís de Camões
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(Com a vara calculei a distância entre os dias)
Com a vara calculei a distância entre os dias
A vara, pensei, vai florir
Posso incliná-la para uma criança a colher
Daniel Faria (1971-1999)
(do livro «Dos Líquidos» - Fundação Manuel Leão, Porto/2000)
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Mi Buenos Aires querido
Sentado na borda de uma cadeira sem tampo,
enjoado, doente, vivo por pouco,
escrevo versos previamente chorados
pela cidade onde nasci.
Tenho de segurá-los, também aqui
nasceram doces filhos meus
que me adoçam belamente no meio de tanto castigo.
É preciso aprender a resistir.
Não a partir nem a ficar,
mas a resistir,
embora seja seguro
que hão-de vir mais penas e olvido.
Juan Gelman (n. Argentina, 1930-2014)
(in «No avesso do mundo»)
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(Não sei quantos de nós estaremos vivos)
Não sei quantos de nós estaremos vivos
No dia em que estes campos
Voltarem a estar verdes;
Mais do que de esperança,
Trata-se da sobrevivência
Da nossa vontade. Do nosso
Sentido de oportunidade
Falaremos depois,
Quando os frutos das árvores
Puderem cair
Sem que os cuidados
Exigidos pela necessidade
Ou pelo excesso de avidez
Lhes extingam o brilho.
Rui Almeida (n. 1972)
(do livro «Leis da separação» - Medula, 2013)
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CANÇÃO
Primeiro, a viagem esburacando-se
Por ruas mais e mais estreitas
Num autocarro fumegante
Até essa casa de subúrbio;
Depois, à chegada, tu,
Luminosa, sorrindo à porta,
Envolta num veludo de perfume,
Cascata de caracóis castanhos -
Tudo o que sobrevive do teu nome.
Na sala, à nossa volta, absorvendo tudo,
O âmbar de uma canção,
Precisamente esta que adolesce a noite
Tantos anos depois,
A canção que ainda és e és apenas.
Nuno Rocha Morais (1979-2008)
(do livro «Últimos Poemas» - Quasi Edições, Maio/2009)
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POEMA QUASE EPITÁFIO
Violentamente só
desfeito em louco
- nem um gato lunar
te arranha um pouco
Morreram-te na família
irmãos mais velhos
Restam retratos de vidro
e espelhos
Entre as fêmeas bendita
não te quis
As outras mataste
(nem há sangue que te baste)
O chão do teu país
deu-te água e uma raiz
muitas pedras mas prisões
- Senhor demónio dos sós
Quando ele morrer
onde o pões?
Luiza Neto Jorge (1939-1989)
(do livro «Os sítios sitiados» - Ed. Plátano, 1973)
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Soneto do amigo
Enfim, depois de tanto erro passado
Tantas retaliações, tanto perigo
Eis que ressurge noutro o velho amigo
Nunca perdido, sempre reencontrado.
É bom sentá-lo novamente ao lado
Com olhos que contêm o olhar antigo
Sempre comigo um pouco atribulado
E como sempre singular comigo.
Um bicho igual a mim, simples e humano
Sabendo se mover e comover
E a disfarçar com o meu próprio engano.
O amigo: um ser que a vida não explica
Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minha alma multiplica...
Vinicius de Moraes
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A VIDA: ÚLTIMAS TEIMOSIAS
À carne são permitidos todos os desastres.
Esta oliveira segura ainda
os próprios intestinos com as mãos. Nada
veio de súbito preveni-la do fim.
Mas não há noites totais. Na mais escura
o peixe do fundo do rio vem até à superfície
fazer sinais com o seu semáforo. Penso
no sorriso da deusa ausente acaso do Olimpo
quando o monje veio procurá-la. Uma deusa
de seios tão firmes que neles se poderia partir
um martelo de bronze. E o Olimpo ensopado pela urina
doutros poetas e doutros monjes mesmo assim de bexigas cheias.
Tu vês? A vida insiste em excesso para que sobrevivamos:
emprenhar deusas! Uma luz intensamente
brilha. Sim! Brilha! Brilha! É uma oliveira
teimando em dar azeite até ao desastre.
Alexandre Pinheiro Torres (1923-1999)
(do livro «A Flor Evaporada» - D. Quixote, Lisboa/1984)