10
Out 12

 

*   *   *

 

ANIVERSÁRIO

 

 

 

Que mais posso dizer que a memória saiba e o futuro imponha?

 

Húmida a noite. E todavia, adivinha-se outro dia limpo. Outro dia, outro passo, outra coisa que chame. Serão gaivotas, flores, lágrimas, sorrisos, mãos ou cães; nada disso ou talvez tudo isso. Mas será sempre outro dia - apesar destes  tempos de caminho para o açougue.

 

Que mais posso dizer que saiba ou queira?

 

 

(Parede, 09.10.2012)

 

publicado por flordocardo às 23:46

06
Ago 10

 

 

As palavras deslocam-se hoje para parte incerta. Partem. Ou fogem. Não sei para onde vão. Limito-me a segui-las. Em boa verdade, para além de estar ciente de que é parte integrante de mim este ímpeto inapelável de seguir as palavras em movimento, em silêncio, poucas coisas sei.

 

Sei que, segundo o relógio, são duas e meia da manhã. Pouco mais sei. Mas continuo a seguir a imprevisível deslocação das palavras. Provavelmente porque gosto do lado oculto e escarpado das ilhas, de seguir os trilhos mais difíceis e improváveis para alcançar os cumes.

 

Resulta daí a minha solidão, suponho. E ela é funda; pois dificilmente alguém conseguirá acompanhar-me pelas escarpas abruptas que se insinuam no meu caminho; carregando palavras e o seu sarro, carregando luzes, sombras, imagens, mares e sedes, perfumes e sabores que me acariciam doce e rudemente os lábios.

 

Sigo as palavras, hoje em deslocação particularmente rápida e errática. Amanhã, dia de outro dia, talvez alguém me bata à porta. E não sei se estarei cá, aqui, carregado de palavras ou totalmente despojado delas. Não sei se a porta será aberta. Sei que depois disso, horas depois, voltarei aqui para dormir de novo. Então sim, por certo, de novo entre palavras.

 

Porém insisto: sei que pouco mais sei do que isto. E se mais soubesse do que isto que interesse teria isto - isto que nem veria de certeza a luz do dia?

 

*

 

E todavia eu sangro. Continuo a sangrar. Eis um sinal de que estou vivo, concluo então. Vivo entre as palavras sanguinolentas que ainda não partiram ou fugiram e que, surpresas, hesitantes, me amparam. E sendo assim, considero-me pronto a partir para qualquer lugar onde as outras palavras, as que partiram, eu possa - quem sabe? -, reencontrar.

 

É isso: as palavras deslocam-se. Limito-me a segui-las, a persegui-las. Tentarei unir umas às outras. Vou partir. Só preciso de um límpido olhar para partir. Pouco mais sei nesta(s) noite(s) em que o vento atravessa o silêncio.

 

(06.08.2010, há 12 horas atrás)

 

publicado por flordocardo às 14:27

07
Mai 10
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Um dia destes poiso os ombros em pleno chão; como quem faz o pino. Deixarei escorrer por mim todos os pesos e sombras que a vida me deu. Esse corrimento indistinto há-de fluir pela terra, há-de abraçar a água, penetrar a pedra, fundir-se ao magma. Ficarei leve.

 

Um dia destes cruzar-me-ei de novo com uma mulher em cujos olhos brilhe toda a esperança e faísquem todos os sonhos. E terei pudor de lhe dizer – e não direi – que a esperança e os sonhos morrem; depressa ou devagar, vão morrendo com o tempo. E seguirei o meu caminho e ela o dela, sem nunca saber se, noutro dia, nos voltaremos a encontrar.

 

Um dia destes cruzar-me-ei de novo com uma mulher em cujos olhos estale uma imensa tristeza, onde durma a mágoa dos sonhos perdidos, onde navegue uma esperança afogada sem aparente razão. E não terei pudor em lhe dizer (ou talvez tenha, quem sabe…, chegada a hora…) que não; que deve levantar o rosto do pisado chão que nos calhou em vida; que deve sorrir - tal qual a flor que espera o sol e espera a chuva; que há sempre sonhos que renovam outros. E seguiremos, sem nunca saber se nos voltaremos a ver.

 

Um dia destes…, voltarei a passar por ti; em qualquer lugar, inesperadamente. E o sangue pulsará febril de novo - trespassado por um silêncio que trará de volta todos os instantes, todas as recordações, todos os líquidos, todos os gritos, toda a brancura dos olhos que existe para lá da brancura dos olhos. E seguiremos ainda - sem nunca sabermos, provavelmente, como em nós teria sido e o que fizemos entretanto.

 

Um dia destes poiso os ombros no chão; pescoço quase em ângulo recto face ao resto do corpo. E depois deitar-me-ei no chão. E levantar-me-ei ou não. Mas ficarei leve; sim, leve como a brisa que adormece encostada a uma árvore, ou a uma lágrima. Ou fica reclinada em ti, em mim, em todos nós. E seguiremos; ou pelo menos a vida seguirá sobre o que sobrou de todos e de tudo - e tanto foi e é.

 

Um dia destes…, o sonho, a tristeza, a esperança, a mágoa, o levantar, o adormecer, o lutar, a menstruação, o primeiro choro de quem chega ao mundo… 

 

Um dias destes havemos de cantar. Um dia destes, um destes dias…

 

(Lisboa, 7 de Maio de 2010)

publicado por flordocardo às 20:28

26
Mar 10

(prosa - passível de dar origem a futuros versos)

 

Sol e depois chuva. Poeira que se levanta para assentar em seguida. Rostos fechados que vagueiam pela rua, de olhos mais ou menos fixos no empedrado lasso dos passeios. Carros parados, em fila, parecendo vazios - se é que não estão mesmo vazios.

 

Sinto-me farto, ligeiramente enjoado, sujo deste trajecto diário e daquilo que o preenche e circunda. Porém, esforço-me ainda por levantar o rosto e erguer o olhar em busca de um sorriso, de uma luz, de uma quebra na monotonia triste da tarde cansada de si ou por nós magoada. Ainda procuro algo que me estremeça, como a respiração (ou o vento) faz à luz de uma vela - e esta a ela, igualmente, mesmo que não pareça.

 

E lembro agora que o teu rosto, o teu andar, o teu porte podiam ser isso neste  preciso instante. Decerto, eclodiria então o mais puro silêncio neste ermo onde passa tanta gente.

 

E logo recordo que só uma vez, um dia, passámos por aqui, ainda que no sentido inverso ao que tomo agora. E o ermo não existia; e não havia sequer sinais do tempo que vincassem o tempo - como agora vincam estas palavras; nem sol, nem chuva, nem poeira, nem rostos, nem pedras, nem carros, nem vazio, nem sujidade - e que eu teria provavelmente, então, um sorriso nos lábios - ao menos, no mínimo, implacavelmente visível por dentro (e, quem sabe, talvez imperceptível para toda a gente).

 

Amanhã - que é já hoje - farei de novo este trajecto. De manhã para lá, ao fim da tarde para cá. Verei, ou não, coisas diferentes? Terá o vento feito aqui a sua residência e afastado a chuva? Terá o sol decidido permanecer aberto por mais tempo? Haverá gatos e cães vadiando? Sentir-se-á um aroma de flores, ou um breve cheiro a pão? Ouviremos os pássaros a pôr a conversa em dia? Terão os rostos outra luz? Estarão as pedras no seu sítio? Haverá ternura nas mãos?

 

Amanhã - que é já hoje - será outro dia. Outro dia que espera estremecer; que espera que estremeçamos mesmo na ausência um do outro - mas que nunca conseguirá fazê-lo em plena ausência do outro em nós.

 

Hoje, a noite prepara já o seu fim, tecendo o dia que aí vem. Assim gostaria eu de cerzir o tempo e a alma. É por isso que escavo o chão e imagino labaredas entre os dedos sujos.

matches  

(Entre Lisboa, Parede e Cruz Quebrada) 

  

publicado por flordocardo às 01:08

23
Mar 10

 

Eu sei, eu sei que o Dia Mundial da Poesia foi neste último domingo. Mas o que aqui vos deixo (chamemos-lhe "texto", por ser coisa ainda incerta, entre prosa e poema) anda há 17 dias a moer-me lentamente, num sussuro tão agudo quanto persistente. Aqui fica agora; aberto, exposto, palpável... 

 

 

 

EU SEI QUE POSSO

 

Eu sei que posso morrer por ti/ pois em ti está o sangue do mundo/ o cheiro ímpio da terra/ a chuva que cai/ o arco-íris que ri tão breve/ Porque em ti o sorriso e o riso/ a inquietude e o sal/ a faca e a ferida/ a ternura e os olhos/ resplandecem e queimam/ e contam histórias nunca ditas/

 

Eu sei que posso cantar para ti/ sem horas aprazadas dizer-te/ soletrar-te/ pois todo o esperma que me habita/ canta sem mácula o seu perfume/ que é simplesmente e pleno o teu perfume/ Porque em ti correm os inomináveis rios/ onde as flores selvagens matam a sede/ e também as aves em movimento/ e todos os animais assustados com a morte/ e mesmo as árvores de raízes fundas/ ou os cactos dos mais frios desertos/

 

Podes por isso queimar-me o corpo todo/ Podes até queimar meus lábios/ transformá-los em cinza/ Eu sei que por ti posso mudar a ordem das estações/ ainda que a minha boca sangre/ ou por instantes chore sem saber porquê/ E porque eu tenho os olhos sentados nos velhos degraus da tua casa/ e o teu brilho irradia ainda nos lençóis/ e neles teus cabelos ainda tecem lágrimas/ eu digo agora algo mais simples/ como se um osso riscasse outro osso/ - és o mais importante nó da minha vida/ mais relevante que a minha vida/

 

Oh meu amor eu sei que posso/ como nunca soube (não tenhas medo)/ cair inteiro na tua entrega e tu na minha/ A menos que seja tarde/ A não ser que procuremos já um lugar/ onde aprender a não esperar o que não volta

 

(Cruz-Quebrada, 26/02–06/03 - 2010)

publicado por flordocardo às 10:54

10
Ago 09

 

Este post devia ser de ontem, ou mesmo de anteontem. Ou podia e devia ser de há muito tempo antes, ou ainda mesmo assim tão intemporal que nunca devia ter existido, ou sequer  devia ter sido pensado.

 

Este post não tem nome, não tem título.

 

Este post é um beijo - ou a memória clandestina, intensa, visceral de um beijo antigo, e tão presente que ofusca tudo em seu redor.

 

Este é o post de quem não tem palavras suficientemente exactas e luminosas, por entre a bebedeira da luz, da sombra e do ar presentes. É o post  daquele que procura o poema capaz e tudo demora e desespera nessa procura; e quase cega.

 

Este post é o esboço, excessivo, de um poema futuro e, como o vento, sem data marcada; poema que busca incessantemente a sua própria, irrepetível e perfumada forma.

 

 

publicado por flordocardo às 10:57

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